Um Natal diferente
"Não podemos fazer grandes coisas - apenas pequenas coisas com um grande amor." MADRE TERESA
Eram 18 horas da véspera de Natal e continuava a cair uma chuva fina lá fora. O meu plano de realizar algo inédito neste Natal pouco antes da ceia parecia estar indo por água abaixo.
Durante a semana havia procurado uma favela na minha cidade (Marília, SP) que pudesse servir de palco para meu plano. Não existem aqui favelas como vemos nas grandes cidades, como aquelas que constituem um grande amontoado de barracos feitos de madeira de tapumes de construção e lonas de plástico. Elas estão na sua maioria nas beiradas da cidade em pequenas formações, não chegando a constituirem bairros propriamente. Mas as casas são também precárias, feitas de madeira ou alvenaria. Quando estava já desistindo encontrei uma rua comprida e sinuosa na beirada de um bairro, em que um dos lados era tomado em sua maior parte por essas casas humildes. Decidi que esse seria o local onde realizaria o meu plano.
Em duas lojas que vendem produtos a R$1,99, comprei aproximadamente 200 brinquedos, metade para meninos e metade para meninas. Por alguns momentos, pensei se aqueles brinquedos, de tão baratos, não seriam recusados pelas crianças. Mas imaginei que a situação daquele local era tão precária que se os pais tivessem R$1,99 nas mãos não comprariam brinquedos, mas um quilo de arroz ou feijão.
Pouco depois das 18 horas a chuva afinal parou e decidi dar continuidade à ideia. Meu pequeno Corsa ficou lotado de sacos cheios de brinquedos, mas mesmo assim consegui colocar nele uma sobrinha a quem convidara para a aventura e seu marido, que veio junto sem ser convidado.
A minha ideia era visitar cada casa com os sacos para que as crianças escolhessem o seu brinquedo. Por isso pedira ajuda à minha sobrinha, pois não tinha a mínima ideia do tempo que essa empreitada me tomaria. Bem, se tudo tivesse ocorrido da forma que planejara, eu não estaria agora digitando estas palavras, porque tudo que ocorre rotineiramente não inspira criatividade nem traz assunto para conversas ou expressões literárias. As histórias só são interessantes quando nelas fatos inusitados ocorrem em um roteiro programado para ocorrer sem grandes incidentes.
No início da rua, parei o carro junto a uma senhora humilde com uma criança no colo e oferecemos-lhe um brinquedo para a criança. A senhora pediu mais alguns brinquedos, pois tinha mais filhos em casa. Demos-lhe o que pediu e depois avancei com o carro com intuito de parar perto do acesso a um amontoado de casas de madeira, para onde desceria para dar seguimento ao que fora planejado, isto é, visitar cada casa com os sacos de brinquedos. Aí é que o destino resolveu intervir no meu roteiro.
De repente, não sei por que meio invisível de comunicação, como se tivéssemos acendido um rastilho de pólvora, começaram a aparecer crianças de todo lado, que cercaram o carro. Meu plano de visitar as casas se esvaiu, pois tivemos que parar o carro e o jeito foi começar a distribuir os presentes ali mesmo. No meio da confusão e das vozes suplicantes, tentei organizar uma fila, e assim, meio atabalhoadamente, fomos distribuindo os presentes, enquanto eu percebia que um nervosismo crescente tomava conta do marido de minha sobrinha. Eram apenas crianças, mas o tumulto parecia estar-lhe afetando de forma particular. Por isso, para apressar a entrega, abri o porta-malas onde haveria um acesso melhor aos brinquedos, mas foi um erro, pois as crianças começaram a avançar todas ao mesmo tempo sobre os sacos. Percebendo que algumas crianças, no tumulto instalado, queriam se aproveitar da situação para pegar mais brinquedos, além dos que já haviam recebido, acabei, com dificuldade, fechando o porta-malas e voltei para a direção do carro, fechando a porta e dando partida. O marido de minha sobrinha, a essa altura, estava transtornado. Queria que saíssemos dali imediatamente e fôssemos embora, pois, segundo ele, corríamos o risco de levar tiros. Exaltado, disse-me que nunca mais eu deveria repetir tal ação. Tentei manter o controle e disse-lhe que ainda havia brinquedos no carro, que não os levaria de volta para casa e que distribuiríamos ali mesmo. Diante do clima, porém, desisti de visitar as casas e fomos distribuindo os presentes para as crianças que encontrávamos na rua. Em pouco tempo, conseguimos distribuir quase todos os brinquedos.
Enquanto voltávamos para casa, disse ao marido de minha sobrinha que não havia razão para ele ter se exaltado. Eram apenas crianças, ninguém daria tiros ali. E que eu faria aquilo novamente. Disse-lhe que eu não o havia convidado, e que quem não tinha coragem de enfrentar situações como aquela, deveria ficar enclausurado dentro de sua redoma de vidro. Depois dessas palavras, em clima de velório, voltamos todos mudos para casa.
À noite, durante a ceia na casa de minha irmã, o marido de minha sobrinha ficou emburrado o tempo todo. Não trocou uma palavra comigo. Mas dei-lhe um presente e cumprimentei-o nas saudações de Natal.
Não sei se peguei pesado demais na resposta que lhe dei. Sei que errei, por inexperiência, por não ter previsto que aquela situação poderia ocorrer, e pensei depois muitas vezes em como poderia ter agido para evitá-la. Talvez devesse ter avisado algum líder comunitário antes para que organizasse a entrega. Talvez devesse ter ido sozinho, e não teria ninguém a me perturbar com palpites. Mas percebi algo importante disso tudo. Parece que as pessoas, de forma geral, confrontadas com o crime e a violência que vêem imperando na população desfavorecida, através dos telejornais e outras mídias, ou diante de relatos de assaltos e roubos de pessoas próximas, tendem a formar a ideia de que exista um clima explosivo em ambientes como os de favelas. E a achar que crianças podem se comportar como criaturas más quando criadas nesses meios. Acho que esse sentimento tende a sedimentar uma postura fatalista e defensiva diante das classes mais pobres da sociedade, condenando com isso qualquer forma de aproximação com elas para uma tentativa de compreendê-las.
De minha parte, entendo que só essa aproximação pode nos dar a verdadeira dimensão dos problemas dessas classes. Só ao vermos a carinha alegre de uma dessas crianças ao receber um presente, que se contenta mesmo que ele custe meros R$1,99, poderemos identificar nela a mesma humanidade que existe dentro de todos nós. É claro que, com esse tipo de atitude, não estamos resolvendo o problema de ninguém, nem da criança, nem da família. Mas aquela criança teve um momento de pequena alegria em sua vida tão precária e sofrida. E isso justifica qualquer risco que porventura estejamos correndo nessas atitudes, e nos dá as forças necessárias para enfrentarmos quaisquer críticas que elas suscitarem.