Na batida do tempo
Na célebre canção que inaugurou as transmissões mundiais de televisão, em junho de 1967, os Beatles diziam que nós só precisávamos de amor, já que não havia nenhuma outra novidade no ar – nada que um dissesse, fizesse, cantasse ou guardasse, que outro não pudesse dizer, fazer, cantar, ou guardar. Além disso, tudo, de uma certa forma, já tinha sido mostrado ou era sabido. O que fazer, então? Aprender a “jogar o jogo” e encontrar uma uma maneira própria de se situar no tempo, uma vez que não iríamos a nenhum lugar onde, consciente ou inconscientemente, não quiséssemos ou tencionássemos estar. A saída seria, pois, simplesmente nos amarmos.
O Luiz Guerra, nosso companheiro aqui do Recanto, que é tradutor profissional e cronista fabuloso, poderá fazer reparos mais que justificados a esta livre interpretação dos versos de Lennon e Mcartney. E se os fizer, ficarei muito grato. Ainda assim, vou seguir em frente com a minha crônica de Natal, festa de que sempre participo com um pé dentro e outro fora. Quem sabe este ano sigo no fluxo, como a maioria, sem querer criar algo novo, atento à mensagem da canção que uniu a humanidade por alguns minutos.
Embora conservador em política, o renascentista francês Michel Montaigne era um crítico do apego excessivo a hábitos, como se fossem verdades acima de qualquer suspeita. E para embasar suas análises citou costumes contrastantes encontrados em povos diversos, no que pode ter sido o primeiro ensaio de um ensaio antropológico.
Ponho-me a meditar nas palavras de Montaigne quando se aproxima este Natal e todos apressam-se a decorar as suas salas, as fachadas das casas, as lojas e as áreas públicas. Outro dia, ouvi uma mãe apontar com entusiasmo ao filho a garrafa alusiva às festas de fim de ano posta à venda pela Coca-Cola: um bojudo e dourado recipiente da cor da espuma do conteúdo, e que faz sonhar mesmo um iconoclasta renitente como eu. Se da solidão do meu apartamento, vejo o arbusto piscando nos jardins da quadra, me bate um sossego. Assemelha-se o pisca-pisca a um mantra luminoso. Uma voz ou mão materna me acalentam, afastando o medo da morte e do desconhecido, tornando a realidade familiar, cheia de sentido, esperança e fé.
Podem imaginar o que significa isso para o homem que sempre viu a vida como um absurdo?
Não. Eu não estou me deixando arrastar por nenhum tipo de conformismo. É que nós mudamos sem perceber, pois temos controle sobre camadas mínimas de nossa psique. O que mudou não é a minha sensação de que o mundo é absurdo e de que a realidade é apenas consensual, ou fruto de acordo tácito. Talvez esteja encarando a necessidade de encontrar o meu lugar no tempo.
Sim. Porque a despeito de qualquer senso crítico em relação ao sentido de realidade ou ao modelo de sociedade vigentes, o tempo passa para mim tanto quanto passa para o conformista. Negar-me a viver o meu tempo, por inconformismo com a passagem do tempo, é tão nefasto quanto me posicionar cômoda e espertamente, deixando o consenso em volta, justa ou injustamente, cuidar de tudo.
Nesse caso, como considerar a mensagem de “All You Need is Love”? Não há nada inovador para se fazer? No que se referia às leis, Montaigne dizia que mudanças, só as inevitáveis. Se deslocássemos este conceito para o plano do comportamento, poderíamos dizer que os Beatles e todas as suas revoluções foram só uma inevitabilidade dos tempos, sobre a qual nem eles próprios poderiam ter tido controle? É bem possível. Há quem ache que nenhuma obra de gênio ou importância foi realizada conscientemente ou com a intenção de ter importância ou ser genial.
Voltamos, assim, ao conselho da canção: “aprender a jogar o jogo”. Meus filhos tinham, não faz muito, o hábito de assistir a um seriado norte-americano chamado “Kenan e Kell”. Nunca gostei do programa, mas o assistia para estar com eles. A despeito do roteiro fraco, num dos episódios, o roteirista acabou revelando uma grande verdade sobre a vida, e que aqui relaciono livremente à data que em breve iremos comemorar, ocasião de se presentear a família e os amigos.
Pois bem, um dos personagens adolescentes, não sei se Kenan ou Kell, compra um bilhete de loteria premiado. O valor – 64 milhões de dólares. Imaginem! Como de praxe, os dois envolvem-se em diversas trapalhadas e ações inúteis até perderem o bilhete. Num dia, milionários em potencial; no outro, apenas dois garotos confusos.
Tentando não ficar soterrado sob aquela baboseira televisiva norte-americana, passei a imaginar que sentido poderia se extrair do episódio mil vezes repetido na TV a cabo. Cheguei à conclusão de que para a maioria de nós seres humanos, a vida é como um bilhete premiado, uma riqueza extraordinária, mas que deixamos escapar no meio de nossas trapalhadas, no apego absurdo a hábitos que não questionamos e a crenças que não reformulamos. Dessa forma, vai passando o tempo, o precioso tempo, entre os sofrimentos incontáveis (e injustificáveis) do dia a dia e a sedação das festas, das copas e das efemérides. Abrigados do tempestuoso e amedrontador redemoinho das revoluções, seguimos entoando canções dentro de células rítmicas confortáveis, construídas talvez para compensar os descompassos gritantes entre o que é e o que poderia ser.