QUANDO VOCÊ TIVER UM TEMPINHO...

Ela, uma mulher de meia idade, nunca aprendeu a ler e escrever.

Não faz muito tempo, lá em casa, enquanto me contava a sua suada história , me fez entender que apenas conhece alguns "grafismos' das letras e sílabas, mas não consegue fluir nas palavras escritas .

Não esconde o fato de ninguém, e nem deveria.

Ocorre que , com o advento da era digital e de tantos Apps, disse-me ser ela extremamente grata pelo fato de que o WHATSAPP lhe possibilita a gravação de voz e , assim, consegue ela se comunicar perfeitamente na lida do agendamento do seu trabalho diário.

Vez ou outra eu esqueço do fato e lhe mando algo escrito e, então, logo me vem a singela bronca:"

"Eita, muié, cê já se esqueceu de novo? Óia , é o seguinte, quando você tiver um tempinho , abre e dá uma ouvida aí no meu áudio...".

Eu acho curioso quando ela assim se comunica "quando você tiver um tempinho abre aí o áudio..."; posto que, quando abro o áudio, eu já tive o tempinho e não teria como saber que ela está me pedindo um tempinho para ouví-la se eu já não tivesse um tempinho para abrir o áudio.

Só depois de abrir o áudio eu posso saber o seu conteúdo, correto?

Dito isso a ela, várias vezes, demos boas gargalhadas,

Ela entende perfeitamente a lógica da minha colocação , mas toda semana me vem o mesmo áudio..."óia, quando você tiver um tempinho...abre e escuta aí o meu áudio".

Dia desses eu tive um tempinho de folga mas vi que ela estava a trabalho na vizinha de porta.

Eu a queria presentear com algo natalino feito pelas minhas mãos, aliás, a ela e à vizinha que havia me dado umas deliciosas bolachinhas de gengibre.

`Pensei...e então fiz dois panetones , uma para ela e outro para a vizinha.

Ambas, super felizes, agradeceram pelo presente.

"Humm, o perfume tá bom!"- comentaram por ocasião da minha entrega, de tão simples e rápida logística..

No dia seguinte , lá me vem outro áudio dela:

"óia mulher, aqui sou eu. É sim, aqui sou eu! Quando você tiver um tempinho abre aí o áudio e ouve eu porque dessa vez eu quero falá procê a verdade; Eu não comi o seu panetone! É que eu dei ele todinho pra minha filha. Nem tirei um tequinho pra mim. Ela adorô seu panetone, muié de Deus! Disse que táva uma delícia. Ela quase nunca come panetone! E mandô eu te falá que o seu é bem natural, com poco açúcar, e isso combinô muito com a natureza dela de pensá na saúde; Mandô agradecê e dizê que ocê tá é de parabéns, muié, tá mesmo! E que deseja a ocê um Natal bem Feliz "

Sim, eu tive um tempinho...abri e ouvi o aúdio e dessa vez perdi a voz através dos ouvidos.

Talvez, você que me lê, esteja se perguntando: "mas o que tudo isso tem a ver com uma crônica de Natal?"

Eu digo que senti ter sido o aúdio um momento vivencial do verdadeiro sentido do Natal, o que sempre está logo ali, bem ao nosso lado, no áudio enviado pelas nossas vidas. Nem é preciso saber ler...é preciso saber ver , sentir e ouvir.

Sim, eu pergunto: como não se ter um tempinho para ouvir um áudio que lhe envia um presente pelo App de voz...de algo tão negligenciado nos tempos, de nome Gratidão?

As formatações antropológicas das comunicações mudaram muito, hoje o tempo dos sentidos é escasso, mas o significado do que importa, acreditem, não mudará jamais. Ainda que tenha que ser ele ressignificado pelas novas "mídias do viver".

A todos nós , na verdadeira presença de Natal, eu nos desejo que...

"Sempre tenhamos um tempinho..." ...uns minutinhos, ao menos...

Só para que possamos abrir os áudios dos nossos corações e ouvir as tantas vozes inaudíveis que pulsam lá dentro.

Inclusive as nossas...