O natal de Zezé
Zezé era um menino pobre. Muito pobre. Vivia pelas ruas de Corinto, pequena cidade do interior de Minas Gerais. Só tinha o pai e um irmão, chamado Carlitos. Eu tinha por volta de 5 anos e ele uns 8. Arranjava uns trocados engraxando sapatos. Sua caixinha de engraxate era sua companheira permanente. Não me lembro em que circunstâncias, mas nos tornamos amigos. Meu pai trabalhava como engenheiro da estrada de ferro e morávamos num casarão de imenso quintal, com mangueiras centenárias, que davam frutos deliciosos.
Por alguns anos vivemos felizes nas brincadeiras do dia-a-dia. Nos natais, pedia à meus pais que providenciassem algum presente ao Zezé, pois senão ele ficaria sem nada. Ele vinha sempre receber o seu presentinho, cheio de alegria !
Um dia, fiquei sabendo que iríamos embora para a cidade grande, Belo Horizonte. Isso me deixou muito triste, por perder o meu melhor e único amigo. Mas a separação foi inevitável. Na despedida, ele falou com convicção: "Daqui há algum tempo, nos veremos novamente."
Por uns tempos após a mudança, lembráva-me dele com frequência. Sua figura alegre, atarracado, cabelos negros e densos emoldurando um rosto redondo e largo sorriso. Depois fui esquecendo, à medida que formava novas amizades na escola, que passei a frequentar.
Alguns anos se passaram. Em uma véspera de Natal, fiquei sozinho em casa para encontrar meus familiares mais tarde, na ceia que toda a família reunida sempre fazia na casa dos tios. Lá pelo final da tarde, as ruas já desertas, começou uma ventania, anunciando uma enorme tempestade. Apenas retardatários andavam apressados, com presentes de última hora e comidas. Tratei de correr, para não ser apanhado pela chuva. Mas meu lado emocional estava como geralmente ficava nessa ocasião, meio melancólico, em vista de tanta gente que não podia ter um natal decente. A desigualdade entre as pessoas me oprimia. Com esse estado de espírito fui pelas ruas, até que, dobrando uma esquina, vi próximo um menino sentado ao meio-fio, com a sua caixinha de engraxate. Estava cabisbaixo, com o rosto apoiado nas mãos. Parecia muito triste. Fiquei paralisado. A cena me hipnotizava e eu não conseguia ir adiante. Passaram-se alguns minutos, até que ele, percebendo que era observado, levantou a cabeça e olhou em minha direção. "Zezé !", gritei interiormente. Ficamos parados cada um no seu lugar, imóveis. Eu queria ir lá abraçá-lo, mas tinha dúvidas se poderia ser algum menino parecido com ele, então eu esperava ser reconhecido. Não sei o que se passava na sua cabeça, mas ele não tirava os olhos de mim e nem saía do lugar. Tomando coragem, aproximei-me a passos lentos. Próximos, face a face, tive a certeza de que era ele. Seu olhar era inconfundível. Fiquei pensando o que dizer, eu ali arrumado para uma festa, diante do menino descalço e com roupas rotas. Então falei: "Zezé ?". Ele meneou a cabeça afirmativamente, mas não disse nada. Lágrimas correram em seus olhos pequenos e brilhantes. Aos poucos foi se afastando, olhando sempre, até que desapareceu ao longe. Eu ali estatelado, sem nada entender. "Por que ?" - me perguntava. E não encontrava resposta. Aos poucos, fiquei pensando se teria sido uma ilusão, de tão atordoado que estava. "Não, não pode, foi real" - dizia para mim mesmo, tentando me convencer.
Lentamente fui caminhando, agora era eu que chorava. Não me conformei em deixá-lo escapar de mim. Para onde ele teria ido ? Como seria a sua noite de natal ? Chegando à casa dos tios, não tive mais vontade de nada, nem de festa, nem de presentes, nem de comer. Disse que não me sentia bem e fiquei à parte de tudo, no meu canto solitário. Sem perceber, acabei dormindo profundamente. Levaram-me para uma cama e lá fiquei. E sonhei. Sonhei com um mundo lindo, de paz, as pessoas felizes. Será que também era um dia de natal ? Não, não era. Ali o natal era todos os dias. Um mundo justo. De repente, quem eu vejo ? Zezé ! Agora estava feliz, sorria e me abraçou. Não falávamos, comunicávamos pelo olhar. Entendi que ele não era mais o menino pobre, era igual a todos os outros meninos. Ficamos a brincar como antes. Não me lembro mais os detalhes, mas depois ele me "disse": "Daqui há algum tempo, nos veremos novamente." Tive a certeza de que Zezé não era mais uma criança desse nosso mundo, estava em outro plano da vida. Convenci-me de que ele era um mensageiro do menino Jesus. Despedimo-nos com o olhar. Uma sensação de paz muito grande me invadiu, só assim consigo descrever, mas foi algo que nunca havia sentido antes.
Acordei com o dia amanhecendo. Todos dormiam. Percorri a casa, restos de papel de presente por todos os lados e o que sobrou da ceia também. Tudo em desordem, um silêncio profundo. Sentei e meditei em tudo o que havia vivido nas últimas horas. Estava feliz, Zezé me iluminou a alma. Esse foi um natal inesquecível, sublime. Nada contei a ninguem. Na minha mente infantil, entendi que estava abençoado pelo Menino-Deus. "Zezé, um dia nos veremos novamente !"
Brasília, 24 de dezembro de 2007