O ANJO E A ESTRELINHA... NO NATAL DAS ENTRELINHAS

Naquele dia, como os de sempre, o ambulatório fervia.

Tantos anos ali e, naquele burburinho que de fora adentrava a minha sala, eu podia ouvir e reconhecer, de longe, o timbre de todas as mazelas que aguardavam na fila que dobrava na calçada. .

Eram incontáveis sofrimentos físicos , emocionais e estruturais.

A criança agitada e aviltada pelo meio, o adulto que comentava a enfadonha e costumeira notícia da corrupção, a mulher que perdera a hora do trabalho, o idoso que desmaiava por falta de comida, a fila da medicação que sempre faltava, a chance que não tinha, a morte inesperada e violenta dum adolescente, enfim, toda a costumeira falta de vagas para se viver com dignidade.

Ali eu sentia remediar o irremediável.

E foi dentro desse sentimento de absoluta inutilidade ao meio que, certo dia, um forte recado me chegou.

Ela, adolescente de quinze anos, entrou na sala com a mãe, meio empurrada, com os olhos baixos, sem fitar o entorno.

Depois de várias tentativas de conversação , enfim, ela levantou a face e pude perceber que tinha uma alteração genética, na qual ao invés de dois, a criança nasce com três cromossomos "21".

A mãe logo me esclareceu: "Ô dona, não adianta tentar conversar com ela, já tentei de tudo, ela não aceita mais falar com ninguém, eu só quero saber o que é isso aqui que apareceu na pele dela e tenho pressa porque eu preciso trabalhar".

Como era difícil.

Nos poucos minutos que eu tinha, perguntei à garota sobre o tudo da mancha, sobre o andamento dos dias dela, se o restante estava bem, sobre o que ela gostava de fazer, se estava na escola, se lia e escrevia, se gostava de música.

Silêncio total, realmente parecia impossível se tentar uma aproximação num tempo tão curto.

Dadas as devidas explicações à mãe e à ela, eu me levantei para chamar o próximo e ,de repente ao sair, a garota me lançou um abraço tão forte que, depois de tanto tempo, ainda consigo sentir a força daquele ato supremo. Lembro que até me desequilibrei...

Quantas forças física e emocional existiam ali.

Lembro que a mãe, tanto quanto eu, ficou muito surpresa.

Passado um tempo, a menina voltou mais duas vezes com um largo sorriso nos lábios, comunicativa, a me contar da sua terapia ocupacional e de todo os demais enfoques multiprofissionais que a família conseguira, como dentre tantos milagres que existe, numa séria instituição do terceiro setor.

Eu não acreditava no que via. Parecia outra pessoa renascida da antiga.

Nas vezes que nos vimos os abraços fortes se repetiram e, diante do presente maior, ela me trouxe dois mimos: uma escultura de anjo em resina e um chaveiro em estrelinha sorridente com os dizeres: "Jesus ama você".

Foi quando entendi o recado, como se um nítido puxão de orelhas, que me chegava de algum lugar.

Ali, na representação das nossas vidas, estava o nosso Natal mútuo, aquele de sustentação de todos os dias e que na sua essência há de ser exercido e reconhecido no pulsar de todas as horas.

Guardei aqueles objetos como quem guarda no peito o verdadeiro sentido do Natal encenado em vida e sempre os coloco na minha árvore natalina.

Talvez, aquela garota nunca saberá do principal presente que dela me veio: a certeza de que todos nós -ainda que não tenhamos a consciência do ato!- sempre estamos no lugar e na hora certos quando a nossa proposta é trazer um pouco do Natal possível à existência do outro.

Nunca mais senti a" inutilidade de não poder fazer nada", porque na verdade sequer temos consciência dos nossos atos que transformam o silencio e o destino das vidas.

Foi ela o anjo que daquele meu momento me despertou para a verdade real e eu, quem sabe, lhe tenha sido uma das estrelinhas, dentre tantas que piscariam no seu caminho.

Ali se escrevia uma crônica de atenção para a possibilidade de sermos esses perenes personagens que sempre estão por aí, a dobrar os sinos das essências, na consumação do vital presépio do nosso dia- a- dia.

Um feliz cenário a todos.