PRESÉPIOS: PELOS CENÁRIOS DAS VIDAS
Dia desses, milagrosamente ainda movida pela magia do Natal, aceitei um convite dum amigo para uma maravilhosa exposição de presépios, a do santuário de São Francisco,centro histórico de São Paulo.
Desde menina me encanto com essa arte natalina, a de representar, em vários modos e estilos, os tantos cenários dos quais fazemos parte em algum momento dessa nossa tão misteriosa passagem terrena; e claro, como arte, não se trata apenas da exposição dos sentimentos dos presepistas, da interação desses com os dos seus interlocutores, mas e sobretudo , se trata da delicada arte de representar os tempos diante de vários recursos, talentos, materiais e possibilidades cenográficas.
Os presépios nos falam...de nós.
Neles enxergamos a história dos povos, das suas crenças, das suas fés, dos seus costumes, das suas alegrias, dos seus sofrimentos, dos seus erros, dos seus acertos, dos seus cuidados e abandonos, das suas descrenças, das suas resiliências...das suas esperanças.
Nos presépios sinto que existe um “sincretismo” cultural e civilizatório gritante e por meio deles podemos observar, imaginar , viajar e contar histórias...da História do mundo.
Portanto, aqui, numa atitude observadora, algo sincretista até, e imbuída do Espirito de Natal, quero lhes falar um pouco do presépio da cidade aonde nasci: São Paulo.
Minha crônica começou naquele dia, durante meu deslocamento de metrô até o marco da Catedral da Sé, a depois seguir a pé até o Largo São Francisco.
Enquanto as paredes de concreto corriam pelos meus olhos cenográficos imaginários estancados no vidro do vagão, eu viajava exatamente pelas paisagens dos nossos cenários sampistas de outrora , tão rapidamente mutantes em tão pouco espaço de tempo, dentre o pouco que me lembro de lá.
Até pensei que, se hoje fosse reconstruir uma cena antiga do presépio da nossa Sampa, começaria pela abstração da garoa de fundo, aquela que já se foi pelo aquecimento da cidade...de pedra.
No meu cenário paisagístico, em meio à acústica remota dos dormentes dos bondinhos de energia limpa, recolocaria o advento de alguns aspectos humanísticos da vida de dantes, como o simples ato que aprendi a repetir só observando meu pai, a comigo caminhar pelo Viaduto do Chá: o de dizer “bom dia!” às pessoas desconhecidas que nos interceptavam naquele ponto da calçada tranqüila e segura.
Eu achava aquilo instigante...mesmo criança, ainda.
Colocaria alguma das casas de chá que deram o nome ao famoso viaduto e as decoraria com guirlandas natalinas naturais, feitas com descartes da flora nativa, para realçarem suas cores fortes junto ao branco das toalhas de linho e das neutras faianças de época.
Minhas igrejas, ah...seriam igrejinhas de todas as crenças, não marcariam as horas já passadas nos seus relógios parados, a acusar o atraso conjunto de todos; mas teriam seus ponteiros a marcar a exatidão das horas que correm plenas e saudáveis para todos-de preferência nunca perdidas!- para o que jamais sabemos ser como...nem para “o que será que será”.
Os sinos do meu presépio dobrariam e trariam de volta todos os pássaros que se foram, perdidos das árvores ceifadas dos seus habitats autóctones, para sonorizarem a BOA NOVA da volta da vida saudável e em global comunhão.
As moradias, ainda que simples...seriam humanas e com compostagem instantânea para todo e qualquer tipo de lixo: os visíveis e invisíveis. Pavimentaria todas as ruas com as poesias infantis das “pedrinhas de brilhante só para o verdadeiro Amor entre o Homens passar...”.
Nada que não possa caber no sonho dum utópico presepista.
O perfume aos ares exalaria só das flores das consciências , nunca das atuais flores secas, fétidas e desidratadas, para que pudéssemos compensar todas as nossas atuais emissões urbanas de Carbono que asfixia a possibilidade do retorno ou do surgimento de qualquer vida ambiciosa por coragem de respirar o ar de Direito.
Assim, seguia eu sonhando pelos trilhos descarrilados do meu presépio de hoje, quando despertei de mim com o chamado:
”Estação Sé, saída pela esquerda do trem”.
Saltei na plataforma a sentir que minha filtração renal excedia a capacidade urinária, então, ainda no Metrô, o coração móvel, pulsante e sincrético do meu presépio atual, procurei por um simples banheiro.
Um transeunte me informou: “só lá do lado de fora do Metrô, ô dona!”.
Adentrei o recinto feminino, como achei mais natural, e ali me deparei com o inferno inserido no presépio atual da minha Sampa.
Alguém imaginaria que um presepista pudesse encenar um inferno num presépio?
Eu não teria recurso lingüístico para descrever o que vi ali, só vivenciando a cena presencialmente, como mero figurante da vida...
No meu presépio dos sonhos, jamais imaginaria eu encenar o vale humanístico da drogadicção que degrada a digna essência da vida humana nos dias atuais da minha Sampa.
Fiz meu “xixi” quase em ato de oração ao milagre, o de ainda poder encontrar um lugar no meu presépio de agora para depurar e desaguar todo meu espanto.
Ali eu também me senti marcando território...
“Tem sabão aqui não, moça, vixi, isso aqui seria muito luxo!”-me disse alguém em meio às gargalhadas debochadas...
Consegui um fio de água vindo dum cano enferrujado, abanei as mãos em meio ar “ocre” de uréia, mas...como em todo presépio há o Sagrado, ganhei um sorriso duma adolescente grávida e figurante da vida, doze anos talvez, ao que retribuí docemente por me sentir a fazer parte do mesmo cenário do todo.
Cheguei ao Santuário de São Francisco depois duma breve caminhada por um cenário de ruínas hoilísticas, advindas de todas as guerras silenciosas.
Segui a caminhar “em ovos”, a pedir licença para poder adentrar os lares das calçadas e, enfim, chegar ao Santuário viva...já era um Milagre concedido.
Por uma das cenas próximas ao magnífico prédio do MPSP, relato que, dentre tantas pixações, uma em especial me chamou a atenção, a frase lançada num paredão da faculdade de Direito do largo :
“-Fuck System!”.
“Sim, alguém sentia como eu...que a arte de montar nosso presépio pede por muitos milagre”- pensei tristemente.
Os presépios nos falam...de nós.
Portanto, ali, na crueza do explícito abandono de tudo pelas ruas do centro Histórico da minha cidade, eis a nossa mensagem presepista real, de nós aos turistas do mundo!
Logo na entrada do Santuário me deparei com o Menino, figura central presente em todos os demais presépios belíssimos.
Nuama atitude de respeito ecumênico a todo ensinamento Sagrado e pétreo... rezei por todas as cenas do planeta, não apenas à perene degradação humanística das nossas crueldades.
Sim o Menino.
São muitos os meninos presentes e ausentes nos presépios das vidas!
Um Menino, a quem todas as representações do Natal justificam seus holofotes simbólicos, em todos os nossos presépios da História: os de ontem , os de hoje e os de amanhã.
Que nos venha o grande ADVENTO do respeito pela Sagrada Infância e à SAGRADA FAMÍLIA, um olhar ao destino dos tantos "meninos" invisíveis, o único ponto de partida para o grande milagre do reencontro da esperança de rumarmos um dia, todos juntos, à vida humanizada, num uno Presépio de Direito, de Justiça e dignidade sociais.
Feliz Re-Natalidade a todos nós.