Uma oferta
I
Pediram-te para escreveres temas do Natal e escreves sobre azulejos e o teu avô. Ainda ofereces um copo de licor de amora, a quem te souber explicar a razão. Não preferias, antes, saber se o Natal de antigamente era melhor do que o Natal de hoje? Ou se quem dá os presentes aos meninos bem-comportados é o Menino Jesus e não o Pai Natal?
Pensando bem, até me poderia lembrar do episódio do Rei Gaspar. O que envolveu, além dele, minha mãe e eu. Parece que em criança odiava o Rei Gaspar. Onde está o Gaspar? Mau, mau menino, não se faz isso, que o Menino Jesus fica ofendido com o menino e não traz nada na noite de Natal. Era tão funda a aversão àquele Rei Mago, que, mesmo assim, arriscava ficar sem presentes. Batendo as pancadas da meia-noite, havia sempre um maná de brinquedos debaixo da árvore. És capaz de me explicar a infalível generosidade materna e a irredutível aversão ao Gaspar?
Não é por aí que quero ir aqui, antes, prefiro ir ao encontro do avô, do que não conheci, mas que sempre quis conhecer. Que vou conhecendo pelo que me dizem dele. Morreu quando meu pai nem dez anos fizera ainda. Dizem-me que, para sustentar sete filhos, era alfaiate e carcereiro. E que minha avó cozia pão para os presos da cadeia. Dizem-me que, permitia que fossem a casa aos Domingos. Dizem-me ainda: que quem deles chegasse por último, fechava a porta atrás de si e atirava a chave para a rua. Nada perturbou o arranjo, até ao dia em que veio uma inspecção surpresa.
Nunca ninguém me disse nada acerca da razão da vinda dos inspectores, mas suspeito que terá sido instigada por alguém que queria o lugar do meu avô. Nunca me disseram se houve ou não sanções. Para dar voz ao silêncio, decreto que não houve quaisquer. Que o arranjo se manteve. Por ser justo.
II
Mas ao que quero chegar mesmo é aos azulejos. E lembrei-me que o meu pai me dissera que o pai os vira a ser colocados no salão da Câmara. O meu pai era um garoto de sete a oito anos quando isto ocorreu e o meu avô estava a um ano de morrer. Dizem-me que, em sinal de reverência, quando lá entrava, tirava o chapéu.
Dizia-me que fora um senhor da cidade [Ponta Delgada] que viera aqui e dissera aquilo e aqueloutro [Luís Bernardo Leite de Ataíde: Ponta Delgada, 25 de Abril de 1883 — Ponta Delgada, 17 de Julho de 1955]. E que fora um homem de Lisboa que em Lisboa os fizera [Jorge Colaço: Tânger 1868 – Lisboa 1942]. Depois fora o mestre José Remualdo e outros quem os colocara [1936].
Lendo nos livros, devo dizer que aquilo que me diziam bate certo: foram mesmo uns senhores que escolheram o que queriam que o pintor de azulejos pintasse em Lisboa [Dr. Artur Soares Arruda, Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal da Ribeira Grande entre 1932-1940] e o Bensaúde trouxe de Lisboa nos seus barcos até à cidade e da cidade veio de camioneta até à Ribeira Grande. Sabe-se também quanto custou.
Pergunto-te, avô, sabes por que razão, em tempo de República, aquele salão foi chamado salão nobre e não salão República? A República não acabara com o Costa Gomes a 28 de Maio de 1926? Agora digo-te eu: aquilo não era nem para ti nem para gente como tu. Como sempre ouvi dizer a meu pai: era para gente da alta. Não vos queriam lá. Que te sirva de consolo ao menos se te disser que o mesmo sucedeu por todo o lado. Era ali que os escolhidos da terra, recebiam gente de bem de fora da terra. Sendo eles os anfitriões, foram eles os que escolheram: duas indústrias e duas festas da terra.
Duas das escolhas, que escolheram para representar a terra, pouco ou nada representam hoje a terra. Em 2013, das glórias da década de trinta, restam um moinho de água e duas fábricas de chá. O brasão municipal foi, entretanto, alterado. Sobrevivem viçosas, as Cavalhadas e as festas do Espírito Santo. Mas…
As duas que se mantêm, dizem respeito ao património imaterial. As duas que desapareceram, referiam-se ao património industrial. Sempre volátil, o chá, património industrial, da década de trinta, ainda naquela década, cedia já o lugar aos lacticínios. Mais tarde, seria a vez da construção civil. E hoje, que escolheríamos para representar a terra? Seríamos, nós, suponho, a escolher.
Eis o que ofereço nesta quadra de Natal.
Mário Moura