O Velho da Horta
O Velho da Horta
Quando o natal vai se aproximando, entre as várias lembranças do meu tempo de criança, me vem a história do velho da horta.
O velho da Horta morava em uma chácara quase em frente a minha casa. Era um senhor de aproximadamente uns cinqüenta anos, taciturno, cara de poucos amigos, diferente da esposa, que era humilde e bastante cordial com os vizinhos, embora muito tímida,e, talvez por isso, ou por medo, não deixava escapar nada da vida pessoal do marido e por conseqüência da sua própria. Viviam ali sem filhos, sem visitas, sem amigos.
Ele era hortelão, daí a alcunha de velho da Horta. Três ou quatro vezes por semana, carregava a carroça com os produtos da chácara e descia rumo à cidade.
Nós, as crianças tínhamos medo do Velho da Horta. Diziam que ele era ateu, e isso era suficiente para nos deixarmos assustados. Lembro-me que meu pai e as pessoas adultas quando se referiam a ele falavam com cautela, e quando o nomeavam ateu, diziam esta palavra em tom quase inaudível. Eu acho que tinham medo que o mundo descobrisse que ali morava um ateu.
As pessoas se sentiam incomodadas com ele, mas ele mesmo não tinha a menor pretensão de incomodar alguém. Apenas vivia a vida à seu modo.
Ele era fora dos padrões, só respeitava e guardava os feriados nacionais. Nesses dias não trabalhava. Se tivesse alguma comemoração, como um desfile, por exemplo, ele e a mulher colocavam uma roupinha melhor, e lá iam para a cidade participar da festa. O mesmo acontecia na terça-feira de carnaval. Mas, em contra partida fazia questão de trabalhar nos domingos e dias santos de guarda, e não só vendendo seus produtos para os clientes da horta, o que teria uma certa lógica. Trabalhava a terra mesmo, carpindo e plantando, como num dia comum, principalmente na Sexta-feira Santa. Numa época, em que nesse dia nem a casa os cristãos varriam, e as mulheres de nome Maria, sequer penteavam os cabelos, não poderia haver heresia maior.
Havia porem uma exceção. O dia de Natal. Nesse dia ele não trabalhava. Não vendia uma hortaliça, nem que fosse para remédio. Falavam até de um suposto presépio que ele montava no quarto.
Sua mulher fazia bolos e doces e distribuía para as crianças, que já estavam acostumadas a irem, nesse dia, à sua porta desejar-lhes feliz natal.
Diziam que ele agia assim pelo fato de não ter filhos. Num ato de resignação velada, ou de insulto hipócrita. Mas eu acho que a fato é que ele não era assim tão ateu quanto queria parecer.