O Carneirinho de Natal
Natal... tempo de mesa farta, guloseimas, assados incríveis, extravagantes até. Peru recheado... pato com laranja... carneiro no bafo... suã com arroz... Muita gente fica salivando só de pensar...
Jamais consegui ingerir carne de certos animais como pato, peru, carneiro, de forma alguma, porque, em minha infância, eu vivia brincando em meio a perus, patos, galinhas de angola, pavões, marrecos, cabras, ovelhas, ou seja, para mim, eles significavam animais de estimação, da mesma forma que meus gatos, cães...
Seria impensável comê-los.
Quando chega a época de Natal, tenho sensações contraditórias. Sinto alegria pela data em si e todo o simbolismo que a cerca, mas tristeza por ver tanto dinamismo em torno de “receitas” com meus antigos animais de estimação e "amigos" de brincadeiras.
E sempre, inevitavelmente, sempre, me lembro de um episódio marcante.
Na juventude, tive como vizinha uma família onde o caçula era um garotinho loiro, sardento, alegre... criança, enfim. A uma certa altura do ano, a família adquiriu um carneiro para “engordar” e saborear no Natal. Não eram incomuns esses procedimentos nas cidades do interior. O carneirinho passou a ser um companheiro diuturno do menino. Lembro-me de vê-lo passar todas as manhãs e tardes, puxando o carneirinho por uma corda atada ao pescoço. O garotinho ia levar o animal para pastar num campo das proximidades. Era uma cena linda – a criança e seu carneirinho, passando alegremente...
Enfim, chegou o Natal e, como planejado, o carneiro deveria ser sacrificado para a ceia. Foi um drama. De nada adiantaram os rogos do garoto para que não matassem o carneirinho. De minha casa, eu ouvia seus gritos, de incontidas lágrimas. O menino literalmente berrava. Não ouvi nenhum berro do carneiro. Acredito que carneiros berram ao morrer sacrificados, mas o menino chorava tão alto perante do sacrifício do amigo que provavelmente cobria seus berros.
Aqueles gritos do menino ainda hoje ecoam em minhas lembranças e emergem mais alto nessa época natalina. Quantas outras crianças não vivenciaram cena semelhante? E quantas mais não vivenciarão? Às vezes, sinto-me culpada por não haver feito nada em prol do garoto, nem um protesto sequer. Apenas externei minha indignação diante de amigos...
E por onde andará atualmente aquele menino? Teria a vida lhe reservado outros "carneirinhos"?...
As engrenagens do destino nos separaram, mas fico a imaginar o que hoje, adulto, ele deve sentir, nas épocas de Natal. Talvez (e tomara que) não se recorde, pois era bem pequeno; ou pode ser que o “sacrifício” tenha marcado profundamente suas emoções...
... Mas pode ser, quem sabe, que o episódio o tenha fortalecido, não guardando mágoas, rancores ou tristeza, mas levando-o a crescer em essência, como pessoa, a conscientizar-se quanto à importância de nosso grau de responsabilidade diante de atitudes drásticas e na tomada de decisões vitais, pois faz parte da existência encarar desafios e “sacrifícios” – que constituem verdadeiras lições humanas – trampolins adequados para saltos qualitativos de nossa evolução moral, rumo à busca e construção da dignidade humana...
Oriza, Natal de 2004
Natal... tempo de mesa farta, guloseimas, assados incríveis, extravagantes até. Peru recheado... pato com laranja... carneiro no bafo... suã com arroz... Muita gente fica salivando só de pensar...
Jamais consegui ingerir carne de certos animais como pato, peru, carneiro, de forma alguma, porque, em minha infância, eu vivia brincando em meio a perus, patos, galinhas de angola, pavões, marrecos, cabras, ovelhas, ou seja, para mim, eles significavam animais de estimação, da mesma forma que meus gatos, cães...
Seria impensável comê-los.
Quando chega a época de Natal, tenho sensações contraditórias. Sinto alegria pela data em si e todo o simbolismo que a cerca, mas tristeza por ver tanto dinamismo em torno de “receitas” com meus antigos animais de estimação e "amigos" de brincadeiras.
E sempre, inevitavelmente, sempre, me lembro de um episódio marcante.
Na juventude, tive como vizinha uma família onde o caçula era um garotinho loiro, sardento, alegre... criança, enfim. A uma certa altura do ano, a família adquiriu um carneiro para “engordar” e saborear no Natal. Não eram incomuns esses procedimentos nas cidades do interior. O carneirinho passou a ser um companheiro diuturno do menino. Lembro-me de vê-lo passar todas as manhãs e tardes, puxando o carneirinho por uma corda atada ao pescoço. O garotinho ia levar o animal para pastar num campo das proximidades. Era uma cena linda – a criança e seu carneirinho, passando alegremente...
Enfim, chegou o Natal e, como planejado, o carneiro deveria ser sacrificado para a ceia. Foi um drama. De nada adiantaram os rogos do garoto para que não matassem o carneirinho. De minha casa, eu ouvia seus gritos, de incontidas lágrimas. O menino literalmente berrava. Não ouvi nenhum berro do carneiro. Acredito que carneiros berram ao morrer sacrificados, mas o menino chorava tão alto perante do sacrifício do amigo que provavelmente cobria seus berros.
Aqueles gritos do menino ainda hoje ecoam em minhas lembranças e emergem mais alto nessa época natalina. Quantas outras crianças não vivenciaram cena semelhante? E quantas mais não vivenciarão? Às vezes, sinto-me culpada por não haver feito nada em prol do garoto, nem um protesto sequer. Apenas externei minha indignação diante de amigos...
E por onde andará atualmente aquele menino? Teria a vida lhe reservado outros "carneirinhos"?...
As engrenagens do destino nos separaram, mas fico a imaginar o que hoje, adulto, ele deve sentir, nas épocas de Natal. Talvez (e tomara que) não se recorde, pois era bem pequeno; ou pode ser que o “sacrifício” tenha marcado profundamente suas emoções...
... Mas pode ser, quem sabe, que o episódio o tenha fortalecido, não guardando mágoas, rancores ou tristeza, mas levando-o a crescer em essência, como pessoa, a conscientizar-se quanto à importância de nosso grau de responsabilidade diante de atitudes drásticas e na tomada de decisões vitais, pois faz parte da existência encarar desafios e “sacrifícios” – que constituem verdadeiras lições humanas – trampolins adequados para saltos qualitativos de nossa evolução moral, rumo à busca e construção da dignidade humana...
Oriza, Natal de 2004