O Julgamento de Lampião e a presença do ilustre
Padre Cícero Romão
Já coloquei na memória
muita estória conhecida,
mas tem uma que de fato
não passa despercebida
pois fala do julgamento
de uma alma atrevida.
Lampião perdeu a vida
porém com indiferença,
sofreu grande emboscada
como forma de sentença.
Agora pra lhe contar,
vou pedir sua licença.
Todos têm a sua crença
acreditando em cultura,
eu como tenho a minha
fazendo a literatura
contarei meu pensamento
sobre a grande criatura.
Pela minha estrutura,
segundo a imaginação
posso até estar errado,
mas peço sua atenção
para apresentar a cena
passada lá no sertão.
Depois que o Lampião
encerrou sua peleja,
vagou morto pela rua
de uma vila sertaneja
e topou na pedra velha
da entrada da igreja.
Nessa hora ele deseja
saber o que aconteceu,
cadê o bando do cabra
que ali desapareceu,
mas escuta um barulho
e na hora estremeceu.
Um homem apareceu
vestido de grande terno,
segurava uma placa
e parecendo moderno
anotava com a caneta
o nome em um caderno.
De um lado, o inferno
e do outro o paraíso,
numa placa que dizia
em vermelho um aviso:
só entra por essa porta
aquele que eu autorizo.
Nessa hora dando riso
entrou naquele salão,
um idoso muito feio
chamado de cramulhão,
segurando uma garrafa
de cachaça em sua mão.
Virgulino viu então,
que sem ter muita demora
sentou-se na sua frente
a Virgem Nossa Senhora,
com seu manto azulado
e o brilho da aurora.
Entra logo e se escora
no altar do tribunal,
um homem de terno branco
desenhado no vitral
com a expressão de paz
e sorriso angelical.
Deu-se início ao ritual
com Jesus lhe afirmando,
que durante todo o dia
estaria lhe julgando,
para ter sua resposta
vai ficar lhe esperando.
Mas podia ir chamando
algum velho sacristão,
que por meio do chamado
tivesse a compaixão
de levar naquela mesa
um santo de devoção.
L - “Padim Cícero Romão,
me acalme, por favor!
Nessa vida não prestei,
mas eu peço com clamor
que o senhor interceda
com Jesus, o Salvador!
S - “Olhe, meu caro doutor,
eu até posso chamar,
mas vou logo lhe dizendo
ele não pode ajudar,
inclusive pode até
seu chamado recusar”.
L - “Como pode afirmar,
que eu não terei ajuda,
em toda vida fui devoto,
só peço que me acuda
porque na hora da morte
minha dor foi bem miúda”.
S - “Sua conversa não muda
toda hora o mesmo papo,
não enrole muito não
para não levar sopapo
que a sua salvação
pode estar por um fiapo”.
L - “Eu acho que não escapo,
mesmo assim eu vou pedir,
a Minha Nossa Senhora,
que venha me acudir,
se meu padrinho não pode,
que venha me assistir”.
N. S. - “Chame ele para ouvir,
o que diz o Virgulino,
talvez conte alguma coisa
que altere seu destino,
mas se não falar direito
sua história eu termino”.
J - “Agora eu determino
que comece o julgamento!”
Disse Jesus na cadeira
esperando o momento
da entrada de Batista
para tomar seu assento.
Agora eu cumprimento
você que está presente
recomendo que não fale
e caso esteja descrente,
não preciso que afirme,
fique apenas ausente”.
L - “Eu começo, minha gente,
porque eu serei julgado,
sendo assim minha versão
terá um peso danado
para que eu vá embora
inocente ou condenado.
Quando eu fui afetado
e fiquei na orfandade,
não existiu um cristão
que praticasse a bondade
de chegar até a mim
para fazer caridade.
Enfrentei toda a maldade,
e disputas do sertão,
perdi casa, meu dinheiro
dormia no velho chão,
até que ganhei a vida
e o nome de capitão".
C - “Não invente, meu irmão,
que você foi bem cruel,
matava por brincadeira
mais amargo do que fel
não merece o perdão
nem amor de Emanuel.
Afrontava o quartel,
cometeu abuso forte
disfarçou o seu pecado
dizendo falta de sorte,
porém você se lascou,
pois chegou a sua morte”.
J - “Cale a boca, se comporte,
deixe o Lampião falar,
quando chegar sua hora
você pode lhe acusar,
mas enquanto não permito
volte para o seu lugar”.
L - “Jesus, tente me escutar,
me conceda o perdão,
me arrependo do que fiz
e de todo o coração
devo merecer o céu
e não essa maldição!”
J - “Terminou a falação?
parece estar nervoso,
vou passar a sua vez
para esse cão tinhoso
que se não falar agora
vai morrer de ansioso”.
C - “Lampião, seu mentiroso,
como mente pra Jesus,
só aumenta a passagem
e o peso dessa cruz,
que talvez vá te levar
para um caminho sem luz.
Tudo o que você induz
não pode justificar,
cada coisa que fizeste
vai no fim te condenar
porque a vida alheia
só um Deus pode tirar.
Jesus, eu vou confirmar
o que digo em sua frente,
esse cabra não é bom
tudo o que fala ele mente,
não seria de bom tom
dar o céu para essa gente”
J - “Seu tinhoso, se atente,
aqui você não tem nada,
somente a vez de falar
com essa língua afiada,
termine logo essa vez
e deixe a boca fechada”.
C - “Essa gente é ousada,
mas não vou me alongar,
até mesmo esse padre
não consegue confrontar,
a verdade que eu digo
ele vai ter que aceitar.
O meu livro vou buscar
lendo na frente e atrás,
mas de cem assassinatos
uns vários anos atrás,
inclusive um que morreu
ao falar com satanás.
Você está incapaz,
de ganhar a salvação
mas se Deus lhe perdoar
tomara que o perdão
venha junto com a pena
para a libertação”.
P - “Vou fazer intervenção,
porque era sacerdote,
peço ao Senhor Jesus
que nessa hora me note
e conceda o dom da fala
para um simples velhote”.
J - “Eu permito, mas anote,
o que eu tenho pra falar,
não é porque permiti
que agora eu vou deixar
que a defesa do rapaz
o senhor venha a tomar”.
P - “Meu Jesus, pode deixar
que eu não vou defender,
mas preciso intervir
e o Senhor precisa ver,
claro, com todo respeito
agora vais perceber.
Satanás veio a dizer
que não tinha salvação,
mas eu peço que escute
o clamor do Lampião,
e não condene o pobre
no calor da emoção”.
J - “Não terá enganação,
o senhor não desconfie,
creia na minha palavra
e no meu tempo confie,
mas toda a situação
o senhor mesmo avalie”.
P - "Oh Senhor, não se arrelie
me perdoe a intromissão,
vou ficar no meu lugar
esperando a solução,
não vou dar mais um pitaco
nem mesmo opinião”.
J - “Olhe só, seu cramulhão,
pretende se intrometer?
Já estou avaliando
qual a pena ele vai ter,
se for falar qualquer coisa
pode agora debater”.
C - “Mais nada posso fazer,
no final vem o perdão,
nunca mais carreguei um
pra passar pelo portão,
no fim a sua vontade
será sempre a opção”.
J - “Pois então, seu Lampião,
vou chamar um cangaceiro,
que antes de vir aqui
já rodou no céu inteiro
procurando alguma pista
do seu louco paradeiro”.
Lampião num derradeiro
momento de discussão,
deu quatro tapas na mesa
mostrando a reputação
de ser um cabra valente
virado de trás pro cão.
L - “Não quero mais falação,
me perdoe, oh Salvador!
Não adianta chamar
cangaceiro ou bom pastor,
porque não aguento mais
esperar esse terror”.
Nesta hora um assessor
saiu dum quarto fuleiro,
segurando pelo braço
o antigo cangaceiro
que morreu numa batalha
na cidade do Salgueiro.
C - “Tá girando o ponteiro,
e nada do resultado,
tenho que voltar pra casa
já tô ficando cansado,
oh, Minha Nossa Senhora,
apresse seu consagrado!”.
N. S. - “Deixe de ser apressado,
você não entende nada,
não perguntei a você
sobre essa vida errada,
se tiver achando ruim,
pegue o rumo da estrada!”.
C - “Mas que velha incomodada,
tem que se meter em tudo,
se pudesse eu tinha ido
entrava no mei do mundo,
mas com essa ladainha
tô ficando quase mudo”.
N. S. - “Olha, diabo chifrudo,
meu filho está chegando,
com aquela resma toda
deve estar terminando
a sentença do rapaz
que está lá esperando”.
J - “Vão todos se levantando,
que termina o julgamento,
tenho escrita a sentença
para o fim do tormento,
peço que seu Virgulino
agora fique atento.
Não tendo regulamento,
para o seu caso julgar,
vou pedir que se prepare
para poder esperar
mais cinco anos na fila
preciso para arrumar.
Não posso nem liberar
pois consta num relatório,
que precisa de mais gente
para entrar no purgatório
e sua chegada nele
vai causar um falatório.
Vou deixar no escritório
sua senha de entrada,
por aqui vou terminando
e não posso fazer nada,
preciso que me espere
noutra sentença marcada.
L - “Mas que confusão danada,
neste espaço aconteceu
esperei por tanto tempo,
meu caso não resolveu,
só queria a sentença
que o Senhor prometeu.
Aquele que escreveu
esse nobre estatuto,
precisa ser demitido
e esse caso não discuto,
como se escreve lei
parecendo um produto?".
J - “Isso é um grande insulto,
pra quê tanta insolência?
Nesse momento devia
dar-lhe uma advertência
e mandar-lhe agora mesmo
pra sala de penitência!”.
L - “Nessa minha existência,
sempre fui bem respeitado,
nas Caatingas do sertão
eu sempre fui aclamado,
e aqui diante disso
é que ficou revoltado!”.
J - “O nobre foi enganado
porque no céu não tem hora,
pode ser acostumar
que vai ser nessa demora,
se eu bem lhe reclamar
mando-lhe logo embora!”
L - “Vou voltar, mas não agora,
tenho mais o que fazer,
se o caso não tem fim
vou procurar entender
como funciona a regra
para quem sabe aprender”.
J - “É melhor obedecer
para não ser condenado,
pro inferno há muito tempo
um cabra não foi levado,
mas eu mando você lá
para ser acostumado”.
O padre ficou calado,
Lampião se intimidou,
satanás rindo a fole
a careta não forçou,
e no meio do braseiro
o homem se misturou.
O julgamento acabou,
havendo grande escarcéu
uma batalha tremenda
abalou o forte do céu,
e por causa do deboche
Lampião ficou ao léu!
União dos Palmares - AL
16/11/2024