E se cair uma vírgula?
1
Eu hoje acordei cansado
Dessa vida fustigada
Então dei a volta por cima
Superei a dor da jornada
Persistindo nessa escrita
De uma forma tão esquisita
Nessa língua mal falada.
2
Mal falada também vou malfalando
Escrevendo certo do meu jeito
Com palavras bem escolhidas
Rebuscadas no fundo do peito
Em letras que eu mesmo colhi
Nos cadernos da vida aprendi
E aqui nessas linhas endireito.
3
E endireito muito bem endireitado
Respeitando a língua portuguesa
"Língua madre" com louvor
Têm nas rimas mui beleza
E as suas regras de pontuação
Causam grande confusão
Quando usadas na incerteza.
4
Sendo usadas na incerteza
Revelam de forma estulta
Que a língua tem suas regras
Escrever sem vírgula ela não faculta
Ela exige sim muito respeito
Aprender a ler e escrever direito
Para ter acesso à norma culta.
5
Norma culta não é para qualquer um
Nem todos têm acesso à escola
Nas políticas sociais do Brasil
A educação é apenas esmola
E assim ninguém quer estudar
As meninas querem só namorar
E os meninos vão só jogar bola.
6
Vão jogar bola até se dar conta
De quão dura é a realidade
Nas batalhas de cada dia
Quando terão passado da idade
Às vezes com família constituída
Não dá mais pra mudar de vida
E já perderam a oportunidade.
7
E essa oportunidade perdida
Acontece sempre na periferia
Onde as condições sociais precárias
Estão presentes a cada dia
Lá não tem água encanada
O esgoto corre na calçada
E o choro da fome é a sinfonia.
8
Uma sinfonia que ecoa da dor
No quarto e na sala ou na viela
É dor de fome e da vida e da alma
Que a esmola social não revela
Nem esconde a morte declarada
Nos gemidos de uma mãe desesperada
Rompendo o silêncio na favela.
9
E o silêncio que se rompe na favela
Já não consterna a vizinhança
Pois a miséria se tornou rotina
Na alma de qualquer criança
Que mal frequenta uma escola
Aprender não entra na cachola
E não vê na educação a esperança.
10
A educação perde a esperança
Quando mal se lê ou escreve
E quando não se sabe somar
Vira tudo uma bola de neve
Então é preciso aprender direito
Ler e escrever sem nenhum defeito
Pois a nossa vida é muito breve.
11
E vencer nessa vida tão breve
Exige-se um bom falar
Primordial ler e escrever
Para pelo menos conversar
E quem sabe fazer um cordel
Rabiscando num papel
Ou na tela do celular.
12
Pois na tela do celular
Tanto dá pra se divertir
Como escrever com perfeição
Porém sem se distrair
Pois um cordel arretado
Pode ser atrapalhado
Se uma só vírgula cair.
13
Então se cair uma vírgula
Toda a sentença perde o sentido
Pois quem é que poderá entender
E assim se dar por convencido
É um atentado à nossa língua
Pois até o significado míngua
E o leitor fica perdido.
14
Fica perdido sem noção
Como o embaraçado carretel
São apenas letras espalhadas
Palavras soltas a granel
Onde não encontra incentivo
Para entender qual é o motivo
Dos versos deste meu cordel.
15
Com os versos deste meu cordel
Ainda um tanto imperfeito
Agora por aqui eu me despeço
E até me dou por satisfeito
Se alguém se incomodar
Por favor pode colocar
Cada vírgula do seu próprio jeito.