DESABAFO DE UM PRESO
Se quiser dizer alguma
Coisa que queira dizer
Por favor não sinta medo
Tenha consigo prazer
Fale tudo pro seu bem
Que vou lhe satisfazer.
O doutor bem que se lembra
Das coisas que lhe contei
Naquele lar esquisito
Nenhuma carta postei
Porque duvido de mim
Por tudo que já plantei.
Distante naquele mundo
Pensando na minha morte
Nunca quis ser desse jeito
Perceba que triste sorte
Longe dos meus manuscritos
Quis brotar profundo corte.
O corpo todo sangrando
Com o sangue do pecado
Pus venda nesses meus olhos
Pra não pensar no passado
A tristeza tomou conta
Sem deixar nenhum recado.
Minha vida não tem outra
Que possa fazer o bem
Vive nos cantos gemendo
Num viver que nunca vem
Sou gente sem ser vivente
Que sofre pelo que tem.
Falam tanto de virtudes
Palavra sem fundamento
Ninguém consegue viver
Com base nesse tormento
Sou grato pelo silêncio
Que fazem nesse momento.
Não se pode comentar
O que nunca saberemos
Sempre sorrir é tristonho
Daqueles que venceremos
Ser dono de quem não tem
É não ver se percebemos.
No caminho que me cerca
Centenas hão de passar
Cientes desses obstáculos
Não vou mais ultrapassar
Escute sem me perder
Porque podem me cassar.
Jamais serei testemunha
Das coisas que contaram
Andando pela cidade
Tantos olhos cantaram
Fiquei pensando calado
Tudo que me falaram.
É vida seguindo, sei
Não devo perder de vista
Posso me fazer de fato
Mas tenho somente pista
Num espaço reservado
Vou derramar toda lista.
Não pretendo confrontar
Com força regimental
Se me fazem proteção
Sinto ser um imortal
Vou cantando meu problema
Nos prantos da capital.
O doutor me tem por zelo
Disso não posso negar
Sou grato pela presença
Já que querem me pegar
Não parto sem ter provado
O que vai me sossegar.
O sossego vive perto
Sem querer me refletir
Gosto da palavra franca
Sem saber se vou partir
Junto todo manuscrito
E nele vou permitir.
A permissão é fiel
E já me tem permitido
Rasgar com a precisão
Sem que me deixe partido
Escrevo no meu sossego
E fico frágil contido.
O cotidiano faz
Reviver tantos mistérios
De posse de documentos
Me fiz dono dos critérios
Sem direito, sem ter vez
Só penso nos cemitérios.
Tantos morreram sem culpa
Ouvindo sermões diários
Uns tantos refletiram
Os ditos sexagenários
Estou trocando palavras
Sou mais um dos sedentários.
Seu doutor me queira bem
E não faça julgamento
Bem sei do que pratiquei
Não faço disso lamento
Percebo meu desencanto
Também o meu sofrimento.
A vida foi tão cruel
Só contive carestia
Andei descalço no tempo
Com gente que só mentia
Olhando pros quatro cantos
O vento nunca batia.
Para sobreviver fiz
Das tripas meu coração
Perdi vergonha na cara
Somente contradição
Não me tenha desse modo
Me deixe sem maldição.
Partido todo por dentro
Sem nem ter dó de ser eu
Porque todo sonho é
Distante do que é meu
O corpo todo cansado
Nunca satisfação deu.
Nas flores e dissabores
Encontrei toda resposta
Colhi da boca cretina
O que jamais se desgosta
Sentindo meu pensamento
Transformei naquela crosta.
Seu doutor de tantas falas
Sei de todo teu cansaço
Onde bate meu sentido
Reflito tudo que faço
Se digo que não disputo
Na reta dito meu traço.
Obrigado meu senhor
Em cumprir o seu dever
Eu sei que posso falar
Por recordar meu viver
Agradeço desde já
Por alguém que vir me ver.
Eu vendo vossa pessoa
Fico só me perguntando
O que pode ser a vida
Se sofre me maltratando
Saio de junto de mim
E tudo vai me matando.
Quis ser poeta, bem sabe
Pois, nenhum verso plantei
Eu bebi feito moleque
E sempre disso gostei
Não venha me criticar
Todo dinheiro gastei.
Errar nessas caminhadas
Sempre pautou meu suporte
Todo sangue derramado
Deste que nunca foi forte
Crimes pelas redondezas
No Sul e também no Norte.
Me lembro desde pequeno
Daqueles tremendos trilhos
Naquele trem de vaqueiros
Mulheres soltando filhos
Os passageiros incrédulos
Causando só empecilhos.
Eu sei que falo bastante
E já penei no pecado
Se me calo sou terrível
Não mando nenhum recado
Sigo no cheiro do rastro
Por isto fiquei marcado.
No bolso nenhum tostão
No banco nenhum vintém
Se tenho que fazer algo
A palavra me detém
Não vivo do que passei
Hoje tudo me retém.
Guardo no rosto tristeza
Na tristeza melancólica
Em tempos de sofrimento
A vida sopra bucólica
No vento que nunca sopra
Me gira na parabólica.
Já falei tudo de mim
E peço por gentileza
Me deixe ficar sozinho
Com minha real certeza
Se quiser me defender
Esqueço dessa pobreza.
Te defendo certamente
Com toda minha verdade
Amanhã serás ouvido
Podendo causar saudade
Neste teu ponto de vista
Vais ganhar a liberdade.