O agricultor de sonhos e a palavra na ponta da língua

1

Peço licença as senhoras

Desta nobre academia

No despertar do primor

Desse majestoso dia

Em dedilhar com louvor

O ramalhete carmim

Deste buquê de poesia.

2

Aos distintos cavalheiros

E vossas cartografias

Retire aí do punho

As glosas das cortesias

Estampando amor em cunho

Assim como os festins

Das flores-sabedorias.

3

O coração é a folha

Do assentar do poema

Cria da inspiração

Aflorada sem problema

Silêncio, está nascendo

A poesia despetalada

Com cheiro de alfazema.

4.

É chegado o grã momento

De pedir a permissão

Aos dignos menestréis

De ler com satisfação

Esses versos costurados

No suor da lealdade

De quem planta gratidão.

5.

É da nossa oralidade

O que se chama cordel

Preso nas regras escritas

No maior sarapatel

Ditando a rima rica

Engaiolando a delícia

De fazer a "escarcéu".

6.

Nascido na boca frouxa

De um povo hospitaleiro

Nas feiras e nas esquinas

Na mistura do tempero

Da fala mansa das gentes

Pra depois de tanto tempo

Ser um um senhor prisioneiro.

7.

Querem higienizar

Esse agreste ser tão

E seu tom de falação

De verso de encantar

Num perrengue malfadado

Distorcendo a nossa cria

No olhar "colonizado".

8.

É preciso ter cuidado

Para não ser epistêmico

Distante da tradição

Preso lá no acadêmico

Rigor do saber razão

E da cultura hegemônica

Jardinando um quadro endêmico.

9

Só sei que de nada sei

Além de pregar botão

Nesse devir inquieto

Com a nossa tradição

Tão sofrida no progresso

Do velho capitalismo

Se achando bonachão.

10

O cordel é tão brocado

Das verdades do sertão

Dos aboios dos vaqueiros

No desafio e canção

Nos graves dos seresteiros

De quem nem precisa escrita

Essa língua danação.

11

Ele é do improviso

Assim como o repente

A embolada do coco

Na alegria da gente

Ouvinte dessas linguagens

Sem querer ser catedral

De vigor todo contente.

12

Não sei se eu me perdi

Se tropecei ignorante

Nessas linhas escrevi

O que eu acho arrogante

Querer tomar o cordel

Como se fosse patrimônio

Dessa gente tão distante.

13

Eles se acham os donos

Do que não tem nem tutor

Do conhecimento bom

Abrolhado é do frescor

Do convívio do sujeito

Que nutre dentro do peito

Da inspiração, amor

14

Peço desculpa, se caso

Me pareço delirante

É que tenho a cultura

Como algo contagiante

Que encontra na usura

O impostor de frescura

O seu vil miliciante.

15

Não é que eu não aceito

As regras do bom cordel

Só não acho muito certo

Se apressar ao papel

De ser crítico inconteste

Sendo o pior carraspento

De atitude tão cruel.

16

Já ouvi: esse não presta

Não tem musicalidade

É sem rima, descompassado

Sem um pingo de verdade

Devia vender gelado

Gritar um arrematado

Pra ter criatividade.

17

Senhoras e menestréis

Dessa pompa academia

Não desejo só discurso

Mas um mundo de poesia:

Cordel na ponta da língua

Estampando as paredes

Com rimas de alegria.

18

Com um tom coloquial

E palavras mastigadas

Na boca do povo simples

Como se fossem piadas

De pássaros sem as plumas

Aprumando seus gorjeios

Na melhor das invernadas.

19

Ofereço esse buquê

Aqui desse meu jardim

Com o peito estupefato

Pois foi plantado por mim

Eu, agricultor de sonhos

De juízo esfarelado

E verso encarnadim.

20

Sou um teimoso aprendiz

Brincante com as palavras

Querendo fazer cordel

Querendo botar as asas

Do mais nobre menestrel

Esse ser de nobre alma

Inventor desse cinzel.

21

Vou parando por aqui

Não quero ser o beiçola

De bater língua nos dentes

De ser tido mariola

Achar que sou um demente

Afrontar os de repente

Como pé de matiola.