VIRGÍNIA

 

Vou cumprindo o meu destino

com decisão e com arte,

coragem e muito tino:

e mesmo de roupa rota

eu vivo no meu degredo

como pirata e garota:

da vida não tenho medo,

sigo o Longo Bacamarte!

 

Família eu tive na vida

com irmão, com mãe e pai;

chamava-me Margarida;

mas numa reviravolta

expulsaram-me do lar,

foi um caminho sem volta

e eu tive que me virar;

mas me mandei sem um ai!

 

Por causa de namorado

a minha vida virou:

lembro dele com enfado:

era um mentiroso nato

e eu, de tão inocente

deixei que ocorresse o fato:

com a lábia de quem mente

ele então me deflorou!

 

Depois não quis mais saber,

tudo foi promessa vã:

ele tratou de correr,

o canalha sem pudor,

sem caráter e sem brio,

não sabia o que era amor;

e eu fui pra rua no frio,

sem uma roupa de lã!

 

E na rua da amargura,

pensando em quanto o amei,

quanto havia de ternura

em meu coração de moça

eu me vi angustiada,

sob a chuva e sobre a poça,

sozinha e abandonada,

mas não me desesperei!

 

Eu sempre fui alta e forte

e portava a minha espada;

não tinha medo da morte

e quem experimentou

na rua me hostilizar

em mau estado ficou,

pois eu tive de lutar

quando me vi atacada!

 

De qualquer maneira enfim

vivendo em plena sarjeta

eu soube cuidar de mim:

fui uma sobrevivente

na cidade da neblina,

num meio tão inclemente,

eu não era mais menina,

o que eu conto não é peta!

 

Mas eu via em toda parte

retratos de procurado

do tal Longo Bacamarte,

uma figura lendária

que enganava a Marinha,

um fora-da-lei, um pária,

e eu sonhava, sozinha,

com o pirata afamado!

 

Com o cabelo comprido

e uma barba por fazer

como um herói era tido,

em sua tripulação

havia um elfo famoso,

e o grande Capitão

de todos era zeloso,

ele era ver pra crer!

 

Não, não era um matador,

só procurava tesouro,

mas carregava uma dor

secreta no coração:

a formosa Rafaela,

que amava com paixão

e vivia a pensar nela!

Rafaela era o seu ouro!

 

E um dia eu esbarrei

com Bil, o grande pirata,

por acaso o encontrei

quando ele foi acossado

pelo bando da neblina

e lutamos lado a lado

numa tenebrosa esquina

sob uma Lua de prata!

 

E Bil, Longo Bacamarte,

seguiu logo pro navio,

eu a seu lado, destarte,

não pensei nada em deixá-lo:

agora eu serei pirata!

Eu não vou abandoná-lo,

sou aventureira nata

e estou com fome e frio!

 

E assim entrei um dia

a servir no Renegado,

e foi bela melodia

a tocar na minha vida!

Amei Bil com toda força,

eu quis ser sua querida,

sentia-me como uma corça,

o coração disparado!

 

Mas o Bil pensava só

na distante Rafaela

e de mim não tinha dó!

Meu Deus, eu pensava então:

que faço pra merecer

ganhar o seu coração,

fazer o amor nascer

se ele só pensa nela?

 

Quinze anos de procura

já tinham corrido então,

Bil sofria de amargura!

Pensei em me conformar

e servir meu bucaneiro

sem mais nada ambicionar

como serve um escudeiro

ao seu amado barão!

 

Vivemos tanta aventura

com Primus e o anão,

mas eu retinha a ternura

e enfrentava os perigos

com meu florete afiado;

assim fiz novos amigos,

mas Bil, sempre algo amuado,

fechava seu coração!

 

Mas o destino por fim

mostrou a ele onde estava

Rafaela, e eu enfim

conformei-me com a derrota;

e o Bil, entusiasmado,

mudou de seu barco a rota,

estava meio aloprado!

E eu, pobre, definhava...

 

Mas veio a decepção!

A vida como ela é:

Rafaela disse não;

o passado já passou,

sinto nojo de você,

esta página virou,

sou hoje como me vê,

cantora de cabaré!

 

Ele voltou arrasado,

pois foi tanta a humilhação!

De coração revoltado

eu procurei Rafaela

naquele antro tão feio

e ao me ver diante dela

segui o impulso que veio:

acertei-lhe um bofetão!

 

Há muito mudei de nome,

Virgínia agora eu me chamo,

e só o amor me consome!

E o meu Longo Bacamarte

é o que eu quero na vida:

dele agora eu faço parte,

e sou a sua querida:

Bil é o homem que eu amo!

 

 

Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 2023.

 

imagem freepik.com

 

 

Nota: o Longo Bacamarte foi advogado antes de se tornar pirata e, ainda muito jovem, conheceu a bela Rafaela, artista plástica, numa viagem de navio. Iniciaram um romance de amor intenso, mas houve um naufrágio e, socorridos, foram levados para locais diferentes e perderam as direções mútuas. Desiludido da vida, Bil abandonou tudo e se tornou o pirata conhecido como Longo Bacamarte, dedicando sua vida a procurar Rafaela pelo mundo inteiro. No dia do encontro com Virginia, Bil tinha uma pequena tripulação escolhida a dedo e como braço direito o elfo sábio conhecido como o Professor Primus, mencionado no cordel. Nem todos aceitaram Virginia, mas ela soube se impor. 

O final do cordel refere-se ao incidente em que Bil localiza Rafaela após 15 anos de separação só para descobrir que ela se tornara uma pessoa de baixo nível, em ambiente vulgar e amigada com um sujeito de maus bofes. Ela ridicularizou Bil por ele ter abandonado a carreira de advogado e se tornado um pirata "com roupas sujas". Ele também foi ameaçado pelos homens do cabaré, mas ficou sem reação e em estado de choque. Virgínia, que o seguira às escondidas, entrou e o retirou, sob as zombarias de Rafaela. Então, deixando o atordoado Bil com o elfo, ela retornou e agrediu Rafaela na frente de todo mundo, e brandindo o florete manteve todos a distância e foi embora. Assim deixou de existir a barrreira psicólogica que impedia Bil de aceitar o amor de Virgínia.

Para mais informações desta saga veja o romance "As aventuras do Longo Bacamarte":

https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/5984718

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 11/02/2023
Reeditado em 24/06/2023
Código do texto: T7716509
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