Pombo, com os pés, manda pombo sem asa pro gol

 

Eu escreveria sobre outra coisa hoje e não citaria mais Eduardo Galeano, pois nem estou muito entusiasmado com a Copa do Qatar, como disse na crônica de ontem. Só que daí o tal Vinícius Júnior mete de três dedos pra área e chega esse Richarlison, domina a bola, que sobe por cima da sua cabeça, e o cara dá uma virada e mete de voleio. PQP, que baita bucha! Daí não tem como não digitar sobre isso aqui, impossível ser cronista na "pátria de chuteiras" onde viveu e escreveu Nelson Rodrigues e não fazer uma crônica sobre tal pintura impressionista, mesmo sabendo que zilhões de outros também o farão. Somos obrigados a nos render ao encanto e ser mais um a fazer mais do mesmo, humildes servos dos deuses do futebol.

 

Eu, brasileiro típico e comunzão, adoro futebol e a beleza plástica do lance, além do tino e da agilidade do jogador, encantaram-me. Depois do jogo fui pra gremionet e revi, sei lá, quase uma centena de vezes o lance, como se estivesse ouvindo repetidamente uma canção nova muito legal - tipo assim como na primeira vez que escutei Rolling in the deep da Adele e não conseguia parar de reouvir. Realmente, quando o juiz apita e a bola rola no gramado a magia acontece, em detrimento de todos os esquemas podres que o business futebol tem fora de campo. São 22 caras, um árbitro, uma bola e duas goleiras e, desde que o cifrão não coloque um juiz ladrão ou um jogador vendido para emporcalhar a coisa, a magia acontece. "A magia acontece", que expressão bonita essa. Só o amor e a magia dão cor pra vida. Amor e encantamento fazem a luz do sol e a cor das flores adquirirem uma beleza única. Esse gol do Richarlison foi pura magia, um encanto para os olhos. Ah, futebol, doce escape, tal qual uma tela de Renoir.

 

"O futebol profissional, lucrativa indústria do espetáculo, maquinaria implacável, está organizado para que o dinheiro mande, mas não seria uma paixão universal se não continuasse a ter, como por milagre tem, capacidade de surpresa" (*). Mas bah, Richarlison, ontem tu fostes uma grata surpresa naquele momento de magia e encanto. "A arte do pé capaz de fazer a bola rir ou chorar fala uma linguagem comum aos países mais diversos a às mais diversas culturas, ao norte e ao sul, a leste e a oeste" (*). Entendendo essa linguagem, fiquei boquiaberto com o gol de Richarlison. O Pombo meteu, com os pés, um pombo sem asa pro gol sérvio. Tá, tá, sei que pombo sem asa é o chute longo e forte que cai dentro do gol sem chances pro goleiro, mas o lance do Pombo foi de tamanho encanto que redefiniu o sentido da batida expressão do jargão futebolístico. Logo, sim, muito sim, o Pombo voou com os pes e meteu pro gol um pombo sem asas ontem, sim. Sim e sim! O que escrevi, escrevi.

 

Notas:

(*) Trechos do texto "O futebol, entre a paixão e o negócio", de Eduardo Galeano, do livro "Fechado por motivo de futebol". Aliás, deixa eu citar outra parte desse mesmo texto que não coube na crônica acima, mas que acho legal compartilhar: "O futebol ocupa um lugar importante na realidade, às vezes o mais importante dos lugares, embora isso seja ignorado pelos ideólogos que amam a humanidade mas desprezam as pessoas. Para os intelectuais de direita, o futebol não costuma ser outra coisa além da prova de que o povo pensa com os pés; e para os intelectuais de esquerda, o futebol costuma não ser outra coisa de que o culpado de que o povo não pense. Mas para a realidade de carne e osso esse desprezo não significa nada. Quando enraízam nas pessoas e nas pessoas encarnam, as emoções coletivas se transformam em festa compartilhada ou compartilhado naufrágio, e existem sem dar explicações nem pedir desculpas. Não interessa se a gente gosta ou não, se é para o bem ou para o mal: nestes tempos de tanta dúvida e desesperança, as cores do time são, para muitos latino-americanos dos nossos dias, a única certeza digna de fé absoluta e a fonte do mais alto júbilo ou da tristeza mais profunda".