A B C DOS SERTÕES
A B C DOS SERTÕES
Água, porque sem água nada presta.
Não tem lavoura; não tem criação,
Em meio às carestias do sertão
Se o sol, dia após dia, mais molesta.
Bacurau, porque a noite é longa e só
Onde o rancho retirado se ilumina.
Um chamego, a carícia feminina…
Cachaça, bate-coxa mais xodó.
Cirandas, onde a tarde cai corada.
A alegria vencendo a nostalgia
Faz a gente encontrar a fantasia
Nos pés descalços d'uma meninada.
Dias, enquanto o sol traz os trabalhos
E a tarefa é entregue concluída.
Vencer cada dia é vencer a vida
Apesar da obra muita e os homens, falhos.
Estradas, visto o mundo sem porteira
E as terras só amamos quando as vemos.
Ir em frente, mesmo que deixemos
Quando muito pegadas na poeira…
Fortes, porque chamados já de cabras
Por percorrermos, brutos, a caatinga.
Podem vir, que tem água na moringa
E pólvora na audácia das palavras.
Grilos, porque atravessa a noite imensa
Sua música esdrúxula e ritmada
Que preenche de beleza o escuro nada
E sempre em solidão quem ouve pensa.
Histórias, repetidas desde o Graal
Ou a que por Carlomagno principia.
Todo um mundo d'Europa, França e Bahia
Em roda da fogueira do quintal.
Incelenças, onde a vida é sentinela
D'alma a ser convencida ao passamento.
Mas todo de esperança e sentimento
O povo a encomendar junto à janela.
Jandaias, onde avoem mais laranjas
E verdes entre rinhas animadas.
Alegrem as caatingas admiradas
Ao largo de currais, roças e granjas.
Labaredas, ardendo os canaviais
Dos massapês em roda d'um engenho.
Línguas de fogo vivo onde o ferrenho
Labutar pelas noites infernais.
Merendas, para bem ver as folias
Dos fogos e fogueiras de São João.
E o povo que se ajunta no grotão
Celebra menos graças que alegrias.
Nonadas, que se vive com tão pouco
Que nem carece ter senão mais fé.
A vida é uma estrada andada a pé
Em que vou meio sábio ou meio louco.
Oxente! Porque só de espanto a espanto
A conversa se estica em longo fio.
Versejador ritmado em desafio,
Eu, no meio do povo, incerto canto…
Pirangueiros, uns tantos vão por aí
A desdenhar, quer viola; quer repente.
Mas na praça a minha arte a toda gente
Terão-de tolerar-me o caxixi!
Quintais, onde brincava de cangaço
De alpercatas, alforje mais chapéu.
Ou vaquejar as reses em tropel,
Co'o açoite lambendo no espinhaço.
Revência, verdejando no roçado
As lavouras no meio da estiagem.
Explodindo de ramas a paisagem
Em contraste ao sertão já ressecado.
Sarapatel, a mor-de mais festança
Para o povo folgar no seu gostoso.
Um capado servido saboroso
De se comer fazendo só lambança.
Trancelins, para a moça mais bonita
Lá da roça vir dama cá na rua
E ficar serenada sob a lua.
Junto d'este que poeta se acredita.
Urupema, de letras, não de grãos
O ofício de em cordéis se versejar:
Pôr cada palavra em seu lugar
Ao aplauso ou arrepio dos cidadãos.
Valentias, que a heróis estes sertões
Cantam os sertanejos romanceiros.
Lembrados por famosos violeiros
No afã de se falar aos corações.
Xique-xiques, que a seca dá ao ganho
Dos homens e dos bichos da caatinga
Pouco vale ao caboclo a sua rezinga
Tampouco ao carcará o seu gadanho.
Zabumba, caixa, triângulo e sanfona
Se acheguem a encerrar esse abecê
Mais um forrobodó aqui se vê
Ao povo mais feliz de toda a zona.
Betim - 28 06 2022