A fome da fome

A fome da fome é demasiada

que a gente sozinha só não aguenta

Eu vi na rua uma multidão

aglomerada buscando ossos

as caras pintadas de remorso

sentindo na pele a humilhação

nas bocas a mesma desolação

e o medo da dor cruenta

que a pessoa vai e enfrenta

deixando a dignidade nas ossadas

A fome da fome é demasiada

que a gente sozinha só não aguenta

Não tem dor que doa tanto

do que o medo do amanhã!

Qualquer força fica vã

diante da paúra e o espanto!

O homem forte cai em pranto!

Diante dessa boca agourenta

e de tudo que ela representa

com sua boca podre, necrosada

A fome da fome é demasiada

que a gente sozinha só não aguenta

Se uma mãe teme pela sua vida

que dirá pela de sua criança!

É de perder toda a esperança

tamanha situação sofrida!

Se em desespero ela vai pra vida

e o desprezo vil ela enfrenta

é por seu filho que ela tenta

superar essa infâmia escancarada

A fome da fome é demasiada

que a gente sozinha só não aguenta

A multidão cresce e se avoluma

debaixo das pontes e calçadas

surge gente de toda alçada

sem ter um teto que os assuma

não lhe dão dignidade alguma

e ainda chamam d'escória fedorenta

e a polícia chega e afugenta

com gás de pimenta e a paulada

A fome da fome é demasiada

que a gente sozinha só não aguenta

Se osso é duro e imastigável

ferindo os dentes ao desgaste

Se não há aspecto que afaste

o povo desse horror abominável

é preciso lembrar o inaceitável

da miséria que cresce lamascenta

porque povo forte é o que enfrenta

quem quer a fome generalizada

Que a fome da fome é demasiada

que a gente sozinha não enfrenta