O CAUSO DO ZÉ BICHEIRA
Foi até os vinte e três anos
Que eu morei no Teixeira
Sendo que durante esse tempo
Convivi com Zé Bicheira
Meu tio e que bem moço
Tinha tido no seu pescoço
Uma berne perto da orelha.
Dos oitos irmãos da minha mãe
Zé Bicheira foi o de maior azar
Porque era um senhor pobre
E com cinco filhos pra criar
Não trabalhava ou estudava
E os familiares só visitava
Pra falar lorota e mendigar.
Ele parecia com Seu Madruga
Da famosa série de televisão
Tinha o costume de ir em casa
Nos três horários da refeição
Pra matar a fome e fazer fofocas
Sobre os conhecidos e irmãos.
Em qualquer hora que Zé Bicheira ia
Eu e meus irmão não gostava
Sendo que a pior de todas
Era no fim na madrugada
Quando ele batia na porta
E depois em casa entrava
Ele batia e exclamava: “Cumade Tita!”
Enquanto o dia amanhecia
Mãe ouvia e ia até a porta
Com hesitação ela abria
Zé Bicheira emburacava
Na cozinha ele parava
E começava a balburdia.
“Papai é um nojento,
num dá nenhum tustão!”
Ele falava do meu avô
Como s’Ele tivesse obrigação
De bancar quem pelas costas
O tratava como corja
Sem respeito e compaixão.
Ele variava entre falar
Da vida da alheia
E sobre Jesus e Santos
Da religião do Zé Bicheira
Que além de comer gostava
De ir pra missa na igreja.
“Tudo o que eu quero Cumade
É uma Nossa Senhora Aparecida”
Ele falava botando o olho gordo
Nos Santos que mãe possuía
Estátuas que mais lhe atraia
Do que pratos com comida.
“quando eu for em Aparecida do Norte
Trarei uma Santa dessa pra você”
A minha mãe falou e ele
Não conseguiu se conter
Deu um sorriso esbravejante
Mas mudou num instante
Indo pro oposto do alvorecer.
“Agora Mara é uma miseravi
Nunca me ajudou cum que priciso”
Zé Bicheira falava da sua irmã como
S’Ela lhe devesse algum serviço
Essa mulher de muita condição
E outros por esse irmão
eram perjorativamente descritos.
Toda vez que o Zé Bicheira
Nessas horas chegava
Ia pra perto do bule
No fogo fervendo água
O café ficando pronto
Quase todo ele tomava.
Mãe enchia uma xícara pra ele
E de um gole ele ingeria
O maior erro de mãe era que
A garrafa ela não escondia
Possibilitando que Zé Bicheira
Tomasse vários em seguida.
Geralmente eu acordava
Ouvindo as asneiras do quarto
Ia pra cozinha e ficava lá
Me sentido o maior otário
Vendo Zé Bicheira secar o chalé
Enquanto a bolacha e o café
Iam pro bucho do belisário.
Bastava pai aparecer na cozinhar
Pra Zé bicheira sumir como papa légua
Porque a cara de pai lhe agredia
Como o coice d’uma égua
Quando pai chegava na cozinha
E vendo que pouco café tinha
Dizia: “maldita besta fera!”
E aí começava a discursão
Entre a minha mãe e o meu pai
Mãe: “se ele fosse teu irmão
Café tu não negaria jamais”
Pai: “eu fazia era pior que
Aqui ele não viria mais.
Ao invés de manteiga no pão
Eu colocaria remédio de doido
Pra Zé Bicheira dá uma mordida
E ficar todo moroso
Amarraria ele em cima do jegue
E o levaria até um porto.
Lá colocaria ele num navio
Que vai pra Coreia do Norte
Vi no jornal que o chefe
Desse país traz a morte
Pra Gente que como teu irmão
É atrevido e sem educação
E quer ganhar sem importe.”
Nessa hora meus dois irmãos
Já estavam acordados
E olha que nem o dia
Ainda havia começado
Como a família buscapé
A minha estava de pé
Já bem antes das quatro!
Mãe ficava chateada
E colocava café no fogo
Enquanto o meu pai
Com cara feia e ansioso
Revoltado bodejava
Até o café ser posto.
Zé Bicheira era magricelo
usava um chapéu e roupa social
veste molambentas que fediam
Mas não causava muito mal
Nos narizes em que o fedor
Atingia como alvo principal.
Era difícil Zé Bicheira vir em casa
Duas vezes no mesmo dia
Se num vinha na hora do café
No seguinte vinha pr’outra comida
Sua entrada era pressagiada
Por um toc toc e exclamada
Que todos em casa ouvia.
Ele não usava relógio
Mas parecia ter um radar
Pois chegava bem na hora
Quando era almoço ou jantar
A família estava sentada à mesa
Na hora do almoço ou da ceia
Quando ouviam ele exclamar:
“Cumade Tita!”, esse som
Atravessava o corredor
Que vindo da porta da sala
Nos ouvidos causavam dor
Dissipando assim a paz
Que era o clima regedor.
Quando só faltava pai em casa
Zé Bicheira ficava confiante
A comida que mãe colocava
Ele devorava com o semblante
Risonho e instantes depois
Botava logo outro montante.
E todo mundo fazia cara feia
Quando ele repetia, enchendo
Seu prato absurdamente
Deixando as panelas quase vazias
E sem vergonha na cara
Zé Bicheira devorava
Causando revolta na família.
Bastava pai passar pela porta
Pra Zé Bicheira detectar
A presença dele e agir
Para dali escapar
Com sua barriga inchada
Ele agradecia e rezava
e depois se camuflava no ar.
Camuflagem simbolizada
Pala saída sem pai lhe ver
Que aparecia na cozinha
E nem mais conseguia ver
Zé Bicheira que pelo Muro
Saia após muito comer.
Pai nem sequer fazia ideia
Que Zé Bicheira estivera ali
Mas só era eu e meus irmãos falar
Pr’ele começar a mugir
Como um boi num lugar árido
Onde pasto não tinha ali.
Ele culpava a minha mãe
Pelas atitudes do irmão dela
“Eu chego morrendo de fome
E só vejo resto nas panelas
A culpa é tua por dá liberdade
E deixar bem à vontade
Esse filho d’uma égua!”
Mãe meia desorientada
Dizia um pouco aflita:
“O que vou fazer? É meu irmão”
E o meu pai lhe respondia:
“Bota ele num vaso sanitário
E dá descarga rápido
Pr’ele sumir da nossa vida.”
Logo quando o Zé Bicheira
Arrumou um trabalho de gari
A minha avó ficou doente
E mãe se ausentou dali
Pra ir cuidar dela no hospital
E ele passou a vir mais aqui.
Ele varria a rua de casa
Todos os dias de tardezinha
Até que passei ver a sua cabeça
Bem na beira da noitinha
Atrás da janela da porta
Enquanto o som dela toc toc vinha.
Eu ia na sala e abria a porta
E Zé Bicheira emburacava
Andando ligeiro até a cozinha
Eu lhe acompanhava
Ele vendo minha cara dura
Mostrava uma face insegura
E numa cadeira se sentava.
“Tem notíça de mamãe?”
Ele perguntava pra mim
Respondia-lhe: “não!
Deixando ele nervosin
O silêncio lhe incomodava
E assim ele começava
A falar pra dar-lhe fim.
Eu cortava o assunto na hora
Porque não se interessava
Por qualquer coisa que fosse
Que o Zé Bicheira falava
Bastava apenas um tempinho
Que sua intenção se revela...
....por meio do pedido que ele fazia
“Tem um feijãozin pra eu comer?”
Eu enchia um prato de comida
E sem querer saber
Ele comia como alguém que
Passou dias sem rango ver.
Depois ele ia embora deixando
O prato sujo em cima da mesa
Mas só que na tarde seguinte
Vinha com a mesma besteira
Repetia a primeira questão
Novamente lhe dizia :”não!”
E a segunda pergunta era feita.
Até que numa tarde botei pra ele
Um pouco de feijão que restou
Não sobrando nada nas panelas
E de repente meu pai chegou
Pagou um prato e foi até o fogão
Só que não tinha mais nada não
E gritando pra mim falou:
“Eu vou sair dessa casa
Porque já tô cansado
De trabalhar feito jegue
Pra sustentar salafraro
Pra ser besta igual tua mãe
Só tu moleque chato!
Você deixe de chalerar ele
Parece até um cachorrinho
Chupando as bola do Zé Bicheira
Apesar dele o dia todinho
Trabalhar e ser aposentado
E fica dando de coitadinho!”
Com essas palavras ditas
Eu me senti muito culpado
Vendo meu pai bem ali
Faminto e muito cansado
Fazendo a própria comida
Após ter passado um dia
Trabalhando no roçado.
Destilei a minha culpa
Descontando no Zé Bicheira
A partir da tarde seguinte
Eu escondia perto das prateleiras
As panelas com comida
Do alcance de sua vista
Pra sua barriga não ser cheia.
Dizia que não tinha comida
E no instante ele capava o gato
Após eu descarregar nele o que
O meu pai tinha descarregado
Em mim após inferir que o rango
Por Zé Bicheira fora devorado.
Até que vó saiu do hospital
E mãe voltou pra nossa residência
Zé Bicheira tava perdendo o costume
Mas restituiu a antiga frequência
De ir mendigar em casa porque
Mãe não lhe dava indiferença.
Continuei escondendo as panelas
Só que mãe as encontrava
Colocava comida pra Zé Bicheira
E voraz ele devorava
E assim como antes
Ele repetia outro montante, não
Não sobrando quase nada.
Um dia desse a minha irmã
Tinha feito um terço de panelão
De doce de coco para comer
Com sua família e irmãos
Mas foi aí que Zé Bicheira
Como um bicho que fareja
Veio também pra refeição.
Minha irmã tinha pego um prato
Afim de pôr pra ele, acho
Mas foi aí que Zé Bicheira
Das mãos dela tomou o prato
E encheu ele até o limite
E um pouco do caldo foi derramado.
Se ele tivesse no “se vira nos trinta”
Teria comido tudo no tempo
Enquanto minha irmã via aquilo
Com expressão de desalento
Ao perceber que na panela
Quase mais nada tinha dentro.
Dos cinco filhos que ele tinha
De vez em quando trazia um
Num dos três horários da refeição
E dos cinco o mais comum
Era ele levar seu filho Bié
Que o cabelinho loirinho é
Da cor do bico dum mutum.
Zé Bicheira costumava pedir pra mãe
Cortar o cabelo dessa criança
Que além de puxar o pai pra comer
Tinha piolhos em abundância
Enquanto mãe cortava seu cabelo
Bié chorava o tempo inteiro
Caindo catarro na sua pança.
Um dia fiquei tão enraivado
Após pai chegar bem faminto
Sem comer porque Zé Bicheira
Já tinha devorado tudinho que
Fechei a porta na cara dele e
Ele deixou de ir lá um tempinho.
Nesse tempo Zé Bicheira
Ganhava dois salários
Sendo que um era de gari
E outro de aposentado
Mas mãe dizia que ele
Vivia muito endividado.
Zé Bicheira nunca tinha estudado
Só aprendeu a ler e a escrever
Apesar de ganhar dois salários
Ninguém via ele reverter
Todo dinheiro em mantimento
No formato de alimento
Para os seus filhos comer.
Mas uma parte do dinheiro
Com certeza ele revertia
Mas pra onde ia a maior parte?
“pros empréstimos” Mãe dizia,
Os juros era um buraco negro
Que puxava seu dinheiro
Onde este desaparecia.
A sua esposa Maria tinha
A aparência de uma bruxa
Ela trabalhava de madrugada
Pelo Teixeira varrendo rua
E com a grana que ganhava
Sustentava a prole sua.
Ela trabalhava de madrugada
E também de tardezinha
Varrendo ruas no Teixeira
As vezes levava uma filhinha
Pra ajuda-la a varrer
E nem treze anos esta tinha.
Zé Bicheira e sua esposa
Eram como pólvora e fogo
Era comum vê-los na rua
Trocando muito desaforo
Quando os dois discutia
a grande bomba explodia
lançado envolta o estouro.
A esposa dele era quem
Mais cuidava dos moleques
Enquanto o Zé Bicheira
vez e outra levava uns tabele
Dos seus filhos que certa vez
O mais Véi e outros três
Agiram como maquetrefe.
Eles mandaram Zé Bicheira
Um empréstimo realizar
Para comprar uma moto
Afim deles nela andar
Zé Bicheira atendeu ao pedido
Mas logo veio a se lascar.
Assim que caiu a grana na conta
Seus quatro filhos o deixaram bebo
Levaram Zé Bicheira pro mato
E lhe deram uma surra em cheio
Pegaram o cartão e foram até o banco
E sacaram e gastaram todo o dinheiro.
Era filhos contra o pai
E esposa contra marido
Ao observar essa família
Uma coisa eu analiso:
Quando falta educação
Ao invés de união só
rege o caos em desequilíbrio!
A minha esperança era que
Zé bicheira nunca fosse mais
Só que logo após um tempo
Voltou pra casa dos meus pais
Vindo muito esfomeado
Comia e até lambia o prato
E ia embora cheio demais.
Nesse tempo o meu irmão mais velho
Trabalhava mais que um jumento
Viajando pelo o mundo sertanejo
Vendendo redes pra tirar o sustento
Até que chegou de uma viagem
Ansiando o relaxamento.
Até que num dia no final da madrugada
Meu irmão estava descansando
Na cama quando Zé Bicheira
Chegou e foi logo emburacando
Em casa e com a sua voz alta
Começou bodejando.
O meu irmão acordou estressado
E correu pra sala da jantar
Onde Zé Bicheira perto do fogão
Falava sem parar
Meu irmão pegou uma mão de pilão
Correu pra cima do seu tio e então
Este desapareceu no ar.
Desaparecimento simbolizado
Pela a sua atroz carreira
Ter antecipado a tragédia
Foi a maior sorte do Zé Bicheira
Que se esquivou de uma lapada
Correu e pulou o muro de casa
Saindo num beco do Teixeira.
Pensei que após uma dessa
Zé Bicheira iria deixar
De frequentar nossa casa
Para em paz nos deixar
Mas só foi passar uns dias
Para ele voltar lá.
Só que dessa ele trocou
O final da madrugada
Pelo comecinho do dia
Que na mesma coisa dava
e certa vez deixou meu irmão
do meio com muita raiva.
Pro Zé Bicheira mãe tinha dado
Um par de tênis cor de breu
Mas foi aí que de repente
Meu irmão do meio apareceu
E disse: “esse tênis é posse minha
Quem quiser compre na lojinha
Porque esse aqui é meu!”
Só foi ouvir essas palavras
Que o Zé Bicheira disparou
Segurando o par de tênis
E nem pra trás olhou
Desaparecendo na porta de casa
Como uma águia que segurava
Nas suas presas algo de valor.
E como um bode choco
O meu irmão começou a esbravejar:
“a senhora tem que perder esse
Costume, do Zé Bicheira chalerar
Quem fica alisando cabeça de
Galinha, pixilinga à de pegar.”
Naquele dia o meu irmão
Do forro não tinha participado
À noite na praça Cassiano Rodrigues
Porque o Zé Bicheira havia levado
O par de tênis que a minha mãe
Havia a ele dado.
Curioso certa vez quando eu
Estava no sítio comendo bolo de fubá
Junto com minha mãe pedi
Para ela me contar
O que levou esse seu irmão
A ganhar o apelido em questão
E ela começou a narrar:
“Dos meus sete irmãos
Zé Bicheira era o mais amundiçado
Quando mãe fazia comida
Trancava dentro do quarto
Porque se deixasse no fogão
Zé Bicheira com o olhão
Comia como gado.
Quando Zé Bicheira era criança
Ele estava andando pela estrada
Até que chegou diante
D’uma pequena chácara
E viu um pé de manga cheio
Do outro lado da murada.
‘Cuidado com o cachorro’
Tinha esse nome numa placa
Só que o coitado do Zé Bicheira
Não sabia ler uma palavra e
Por isso ignorou a mensagem
Que uma tragédia pressagiava.
Ansiando as manga gigante
Zé Bicheira pulou o paredão
Até que de repente foi atacado
Por um pastor alemão
Que mordeu o pescoço dele
O dono da casa viu eles
E parou a confusão.
Ele foi levado de jegue
Pro hospital do Teixeira
E lá trinta pontos foi dado
No pescoço do Zé Bicheira
Só que enquanto se recuperava
Lava de moscas se instalava
No corte perto da sua orelha.
Papai se recusou
A mandar ele de volta pro hospital
Preferiu usar o seu método
Que tinha dado certo afinal
No seu cachorro vira lata que
havia sofrido do mermo mal.
Papai tratou ele
Sem sequer usar anestesia
Usando seu spray roxo de bicheira
Doença que seu cachorro possuía
E quanto mais vovô usava
Mais o meu irmão sofria.
Até que cum tempo veio o alívio
Ele começou a se curar
A bicheira foi desaparecendo
O corte começou a cicatrizar
E quando ele ficou curado
De ’Zé Bicheira‘ passou a ser chamado
Pelos moradores desse lugar.”
Como Gabriel Gárcia Marques
Após ouvir as histórias do seu avô
Ouvir essa história da minha mãe
Foi como um dedo que tocou
O meu espírito literário
Ficando este inspirado
a compor esse causo do interior..
Até a data em que esse cordel foi
Concluído por mim que sou do Teixeira
A casa dos meus pais ainda era frequentada
Pelo o meu tio Zé Bicheira
Que nascimento até esta data
Ainda vivia no Teixeira.
Só que a sua mundiça exagerada
Tinha sido enfraquecida
Agora pai chegava em casa
Depois do Zé e via comida
Continuava com raiva dele
Só que a transmutava em empatia.
Zé Bicheira era muito religioso
Rezava toda vez após comer
Ia para a missa nos fins semana
E nos dias úteis se viesse a ter
A estátua de nossa Senhora Aparecida
Despertava nele seus zói de bila
Porque era tudo que ele queria ter.
Helenice a minha mãe
Ela tinha vindo pra cá
Levei ela até Aparecida do Norte
E ela comprou nesse lugar
Nossa Senhora Aparecida
I dias depois do Teixeira dizia
Logo quando meu celular tocou:
"Só foi dá a Santa pro Zé Bicheira que
Os seus olhos brilharam como a lua cheia e
Na hora ele agradeceu ao Senhor."
Santo André, 2 de Fevereiro de 2022