A NAMORADA FUSCA
Quem já viu alguma vez
Alguém com estranha paixão,
Dessas deveras inusitadas
Que vai além da emoção?
Não falo do mero sentimento
Nem do querer passageiro
Ou do amor de um roqueiro
Tão parecido com o vento
Vagueiam, são ondas do mar.
Falo do desejar obsessivo
Tão ardente quanto fogo
Nascido do anelo impulsivo
De modo que se enraíza
Rasgando as profundezas
E vão enganando as certezas
Tão anormal que inferniza
Eu testemunhei algo assim
Nas minhas muitas andanças
Por esse país tão imenso
Vendo farras e festanças
E digo: fiquei sim, atônito,
Com o caso bem estranho
De um louco meio fanho
Num amor nada platônico
Vi pessoas comendo formigas,
Mulher de bigode brusca,
Mas nunca pensei enxergar
O fanho namorando um fusca
Expressando todo seu carinho
Deitado como se numa cama
Dizendo, em êxtase: “me ama,
Vem me dar tudo, carrinho!”
Tudo bem, eu vou explicar,
Sobre quem estou falando
Para que ninguém vá pensar
Que estou mesmo inventando
Esse cara de voz fanhosa
Era um jovem todo doidão
Que não punhetava com a mão
Mas com “uma” fusca fogosa
Veja só quanta imaginação
A mente consegue engendrar
Para levar um debilóide
À guisa de mulher desejar
Um veículo como esposa
Então,vendo um fusca gama
P’ra ele é a mulher que ama
Chuva com sol, casa a raposa
Lá estava nas ruas ele à toa,
No rosto o seu riso bobão
Parado, andando ou correndo,
Fusca de brinquedo na mão
Olhando p’ra tudo que é lado
Tomado de ânsia sem par
Para ver se vai encontrar
Seu grande amor estacionado
Assim, bastava ele avistar
A “namorada” no acostamento
Para ficar todo excitado
Lembrando um bruto jumento
Que se aproxima caviloso
Daquela a quem pretende ganhar
E como quem vai paquerar
Mostrava-se todo amoroso
Passava a mão, carinhoso,
Na quente lataria do fusca
Balbuciando frases sem nexo
Perdido na mente obtusa
E sobre o capô se deitava
O pingolim já p’ra fora
Pois era chegada a hora
De ter a “mulher” que amava
Naquela estranha intimidade
No caos urbano a céu aberto,
Ele amava o fusca querido
Com gozo e tanto, decerto,
Na lataria deixando escorrer
Seu branco esperma gosmento
Tão asqueroso e nojento
Quanto seu malfadado querer
Depois ficava deitado
Todo contente e satisfeito
No rosto um sorriso feliz
Pelo que acabava de ter feito
E mesmo que o sol escaldante
Queimasse a ele e ao carro
Permanecia tirando sarro
Eufórico, abraçado à amante
Às vezes o dono do carro
Pegava o fanho em flagrante
Com o pingolim em riste
Já seduzindo a “amante”
E gritava desesperado
Brandindo os braços no ar
Quase sem poder falar
Xingando o doido tarado
Este olhava o proprietário
Cheio de espanto e rancor
Com o cara ressentido
Por atrapalhar o seu amor
Mas fugia resmungando
Com seu andar engraçado
De quem é leso e pirado
E se ia resfolegando
Eu nunca soube o seu nome
Apelidei-o de Zé Buchada
Provavelmente tenha sido
Por ter fusca como amada
Mas não fazia jus ao apodo
Pois era um fino magrela
Bem delgado e banguela
Parecendo cabo de rodo
Sobre Zé buchada escrevi
Uma crônica hilariante
Um conto bem engraçado
Com título contagiante
Que despertou num jornal
Excelente reportagem
Descrevendo a imagem
De alguém nada normal
Zé Buchada desapareceu
Assim, repentinamente,
E ninguém soube explicar
Se estava morto ou doente
Foi como se alguém soprasse
Numa lamparina acesa
Aboletada numa mesa
E ela, súbito, apagasse
Há versões contraditórias
Do que realmente ocorreu
Com o cara que amava fusca
Se ainda está vivo ou morreu
Uns falam que o mataram
Por causa do que fazia
Pois de fato enraivecia
E talvez o assassinaram
Boa parte deste cordel
Tem um tanto de verdade
Outro tanto eu inventei
Com minha criatividade
Foi só para descontrair
Todo poeta é inventivo
E basta um só motivo
Para a sua poesia sorrir