RETALHOS DE MINHA VIDA

Por Gecilio Souza

Dei um pulo no passado

Me veio a recordação

Como se fosse filmagem

Um filme em exibição

Aquelas cenas da infância

Tocaram o meu coração

Os lances da adolescência

Abriram a imaginação

Essa fase complicada

Que deixa a vida marcada

Com algum tipo de cenão

Mas a vida no sertão

Por ela mesma é narrada

Na luta do sertanejo

Que fica bem registrada

As rachaduras nos pés

E cada mão calejada

Constituem a identidade

Pelo tempo autenticada

Do humilde lavrador

Que manobra sem pavor

Machado foice e enxada

Na seca continuada

Sob o Sol abrasador

O valente camponês

Prossegue no seu labor

Tem o preço de um sonho

Cada gota de suor

As três refeições diárias

Ele é quem sabe o valor

Sua providência é o chão

E a chuva que forma o grão

Que alivia a pior dor

O tempo é o professor

Na escola do sertão

Assim também fui criado

Recebi dura lição

Fui picado de abelhas

Marimbondo e escorpião

Descalço pisei em espinhos

Me queimei no cansanção

Comi mandioca esponjosa

E arroz com macarrão

Berdoégua e caruru

De um ovo fazia angu

Para uma multidão

Um ano sem ver feijão

Nem sequer fava ou andu

Recorria a alguma caça

A sorte dava um tatu

E no limite da fome

A gente comia teiú

O cerrado ressequido

Não dava pequi e caju

Papai ia de madrugada

Tirar madeira pesada

Pisando em jaracuçu

Na grota ou no murundu

Levava a mesma jornada

Meu pai criou onze filhos

Foi dura a sua empreitada

Minha mãe fiava e tecia

Fazia roupa improvisada

Camisa branca e limpinha

Calça bem feita e listrada

Artesanato de algodão

Tudo costurado à mão

Para vestir a filharada

A cidade era afastada

E a única condução

Era o lombo do cavalo

Que causava exaustão

Se alguém adoecesse

Só havia uma solução

Chá de cascas e raízes

E recorrer à oração

Pois de médico no lugar

Não se ouvia nem falar

Veja só que situação

Já trabalhei de peão

Para uns trocados ganhar

Fui servente de pedreiro

Nunca fui de recusar

Qualquer trabalho honesto

Não é feio trabalhar

Feio mesmo é aplicar golpes

Errado é trapacear

Trabalhei desde criança

Com a viva esperança

De algum dia estudar

Não custa nada sonhar

Mas é bom ter na lembrança

Que sem luta e sem esforço

Nenhuma vitória alcança

O que lubrifica o sonho

Desta vida que é uma dança

É o suor do dia a dia

Porque há uma aliança

Entre sonho e realidade

Quem não luta de verdade

Não melhora nem avança

Ter firmeza e confiança

Coragem e criatividade

Não é sorte nem milagre

É disposição e vontade

Já chorei de desespero

Nas ruas da grande cidade

Se os parentes soubessem

Seria uma intranquilidade

Com a situação contornada

Nova etapa começada

Acordar cedo e dormir tarde

Também dormi na metade

De couraça ressecada

Repleta de saliências

Sem travesseiro sem nada

Andei quilômetros à pés

Exausto pousei na estrada

Pedi um pedaço de pão

Comi comida estragada

Foi uma fase tristonha

A família não bisonha

É a herança mais honrada

Maior riqueza deixada

Por quem só tinha vergonha

É isso que desafia

A sacanagem medonha

Foi o meu pai que jamais

Esquentou colchão e fronha

Bom filho é o que realiza

O sonho que o pai sonha

Eu ainda digo mais

Quem não cuida bem dos pais

É mau caráter ou pamonha

Espingarda sem coronha

Filhos sem bons ideais

Muitos corações ingratos

Se transformam em marginais

Almas sujas e sebosas

Com riscos potenciais

O meu pai nos educou

Nos deu lições informais

Que não há em academia

Mas aprendi a ler poesia

Foi nas bancas de jornais

Eu achava tão legais

Aqueles cordéis que eu lia

Histórias bem criativas

Com as quais me envolvia

E no compasso das rimas

O meu coração batia

Conheci um bom cordelista

Lendo a sua biografia

Por isto o cordel me afeta

Tentei até ser poeta

Quem sabe serei um dia

Mas voltando ao que eu dizia

Para a história ser completa

Já dormi em rodoviária

Na friagem e sem coberta

Sob a pia do banheiro

Com aquela porta aberta

Foi em Sobradinho-DF

Essa experiência direta

Por si significativa

E com a esperança viva

Prossegui na mesma meta

A pista nunca foi reta

Eu próprio era a comitiva

De Brasília à Goiânia

A luta foi progressiva

Desembarquei em Campinas

Com a alma apreensiva

Uma e meia da manhã

A friagem era opressiva

Com o endereço na escrita

Acertei com um taxista

Gente boa e prestativa

Mas a única alternativa

Era o que eu tinha em vista

Um primo que ali morava

Uma pessoa bem quista

Entrei no táxi e saímos

Muito ágil o motorista

Encontrou o endereço

Casinha beirando a pista

O próprio foi quem bateu

Lá de dentro respondeu

Voz suave e realista

Eu que já não tinha crista

O sinal desapareceu

Foi a famosa "Tia Zefa"

Que a má notícia me deu

Meu primo havia mudado

Não tinha o contato seu

Ela até pediu desculpas

Mas quem devia era eu

Tentando seguir em frente

Entrei no táxi novamente

O taxista me surpreendeu

Porque o dinheiro meu

Eram uns centavos somente

No seu humilde fusquinha

Me levou gratuitamente

De volta à rodoviária

E ainda gentilmente

Ofereceu-me um quartinho

Precário sujo e quente

Dormi no chão mal forrado

E num banco ao meu lado

Dormiu um deficiente

Foi tranquilo e indiferente

O "louquinho" comportado

Me levantei logo cedo

Com o corpo amarrotado

Logo o taxista chegou

E me viu naquele estado

Pagou o café da manhã

Leite, peta e pão torrado

Tomei todo o alimento

Foi um alívio no momento

Porque estava esfomeado

O taxista preocupado

Mas com seu desprendimento

Querendo mesmo ajudar

Me pediu um documento

Fez uma cópia e saiu

Disse que eu ficasse atento

Ia anunciar nas rádios

Ao público conhecimento

Retornou de mão vazia

E cabisbaixo me dizia

Demostrando sentimento

E ainda disse lamento

Não é o que eu gostaria

Mas preciso ir trabalhar

Vivo numa correria

Fiz o que pude fazer

Se mais pudesse eu faria

Agradeci ao taxista

Por tamanha empatia

Me abraçou se despediu

Entrou no Fusca e saiu

Eu fiquei na agonia

A fome naquele dia

Muito mais forte surgiu

Encostei numa lanchonete

O dono logo me viu

Lá tinha mandioca frita

A lancheira ele abriu

Quanto vale um pedaço

Perguntei ele refletiu

Foi para dentro no ato

Voltou trazendo num prato

Pedaços que reuniu

Me entregou e sorriu

Com aquele olhar pacato

Tome aqui meu rapazinho

Percebo de imediato

O seu semblante de fome

E de quem dormiu no mato

Me deu mandioca com carne

Pense o quanto lhe fui grato

Tão feliz porque lanchei

Por umas horas fiquei

Satisfeito mas não farto

Em seguida outro fato

Que ainda não contei

Eu havia guardado a "mala"

Aquele dia que cheguei

Num simples guarda-volumes

Próximo de onde lanchei

E então chegou a hora

De retirar o que deixei

A diária era um cruzeiro

Mas eu não tinha dinheiro

Ao funcionário implorei

O meu drama expliquei

Mas o rapaz bem grosseiro

Tratou de me ignorar

Se envolveu num converseiro

Com colegas e clientes

Me ignorou o tempo inteiro

Umas roupas e um documento

Deste pobre passageiro

No desespero da vida

Vi somente uma saída

Procurei sair ligeiro

Bem discreto e matreiro

Vendo a turma entretida

Resolvi pegar a mala

Ação desapercebida

Entrei na Avenida anhanguera

De Goiânia a mais comprida

Um sol quente de rachar

Cabeça zonza e dolorida

Meio triste e cansado

Com sono e desanimado

A resistência reduzida

Quando eu via uma subida

O desânimo era dobrado

Tentava buscar mais força

Na lembrança do passado

Fui andando até o limite

De ficar estropiado

Cheguei a uma guarita

Vi um sujeito sentado

Era o próprio cobrador

Vendendo ticket no valor

De um cruzeiro tabelado

Me dirigi acanhado

Implorei o seu favor

Que me doasse um ticket

Ele disse não senhor

Depois de muita insistência

Atendeu o meu clamor

Peguei o ônibus e desci

Distante que era um horror

Procurando outro parente

Que exercia eventualmente

O ofício de pastor

Na carreta de um trator

Eu entrei imediatamente

Pois era estrada de chão

Do terminal para a frente

Sumi no meio da poeira

Muito suor e sol quente

No setor Vila Pedroso

Desembarquei finalmente

Estava todo empoeirado

Faminto e debilitado

Eu era um resto de gente

Sem o endereço exatamente

Tudo era mais complicado

Fui de igreja em igreja

Mas sem qualquer resultado

Não localizei meu primo

Desisti meio frustrado

Andei até uma praça

Onde estava concentrado

Um ponto de distribuição

De cestas de alimentação

Do governo do Estado

Parei um pouco afastado

Numa desanimação

A malinha entre as pernas

E isto chamou atenção

De quatro policiais

Que faziam a guarnição

Vieram de dois em dois

Para a minha direção

Muito gentis por sinal

Era ditadura afinal

Período de repressão

Fez alguma indagação

Apenas um policial

Bem sério e mal encarado

Mas tranquilo e cordial

Pediu algum documento

Tirei e mostrei o tal

Certidão de nascimento

Que é comum e normal

Ele olhou e devolveu

Em seguida me ofereceu

Uma pitadinha de sal

O militar foi legal

Na hora me entendeu

Falou: também sou baiano

Do mesmo município seu

Comunidade de Currais

Ali mora o povo meu

E quando ergui a camisa

O rapaz se comoveu

Eu era um smilinguido

Minha barriga havia sumido

O peito desapareceu

Nenhuma lágrima desceu

Mas ele ficou comovido

Falando com os colegas

Este rapaz é sofrido

Dirigindo-se a mim

Saiba que está protegido

Assim que o almoço chegar

A você será servido

De fato não demorou

Uma Kombi estacionou

Com o almoço prometido

Na marmita um sortido

O soldado me entregou

Comi menos da metade

O pouco me saciou

O militar conterrâneo

Num papelzinho anotou

Algum recado a lápis

E assim me recomendou

Queira entregar este escrito

Ao guarda lá do distrito

Na hora um ônibus encostou

O soldado me falou

Este ônibus não é bonito

Transportar as cestas básicas

É seu trabalho restrito

Por isso não tem poltronas

Está sujo e esquisito

Vá tranquilo que é seguro

Tente não ficar aflito

Quando o motorista parar

Você fica para entregar

O bilhetinho bendito

Eu magro feito palito

Tratei logo de entrar

O tal ônibus se arrancou

Senti o mundo rodar

Fiquei sambando e caindo

Sem ter onde segurar

Rodopiando no vão

Não tinha como sentar

Parou para eu descer

O guarda veio receber

Porque estava a me esperar

Leu e foi me explicar

O que eu precisava saber

Explicou que o quartel

Iria me fornecer

As três refeições diárias

Mas fez questão de dizer

Que o espaço de dormir

Não podia me oferecer

Fiquei menos preocupado

Porque estava assegurado

Onde eu iria comer

Não podia esmorecer

Nem ficar desesperado

Sem notícias de ninguém

E por ninguém procurado

O alimento bem fraco

Passei noites acordado

Tomava as três refeições

No horário determinado

Me faltava até saliva

Às vezes sangrava a gengiva

Mal nutrido e desidratado

Em um córrego bem fechado

Quase caí da estiva

Dormi no banco da praça

Sob a friagem opressiva

Eu pensava nos parentes

Com tristeza depressiva

Implorei à natureza

Que fosse compreensiva

Café, janta e almoço

Quase no fundo do poço

Minha face era pensativa

Sem resposta positiva

Já afinando o pescoço

Até que um certo dia

Sem alarde ou alvoroço

De uma banca de revistas

Veio um tranquilo moço

Era o jovem proprietário

Me fez o seguinte esboço

Durma na minha banquinha

Essa semana inteirinha

Você está um destroço

Foi tão nobre esforço

Que daquele jovem vinha

Aceitei imediatamente

Passei a mão na malinha

Um malote de papelão

Era a bagagem que eu tinha

O rapaz me deu a chave

Já era de tardezinha

Mostrou um pequeno colchão

Ali ao lado do balcão

E junto uma cobertazinha

Aquela semana era minha

Ganhei uma proteção

Três vezes eu ia ao quartel

Na hora da refeição

Neste ínterim um soldado

De cognome Galvão

Me levou a uma obra

Em início de construção

Do outro lado da avenida

Procurando uma saída

Alguma colocação

Por coincidência ou não

Veja como é a vida

O encarregado da obra

Fez excelente acolhida

Também conterrâneo meu

Gente boa e decidida

De Santa Rita de Cássia

Cidade baiana querida

Me perguntou no momento

Se eu tinha algum documento

Falei com a voz inibida

Tenho a reservista vencida

E a certidão de nascimento

Na hora o meu conterrâneo

Iniciou um movimento

Para arrecadar dinheiro

Conseguiu o seu intento

Fomos tirar as carteiras

Fizemos o requerimento

De trabalho e a identidade

Saíram com celeridade

Para o meu contentamento

E então deu andamento

Ainda naquela tarde

Me arrumou uma ocupação

Para a seguinte atividade

Auxiliar de pedreiro

Aceitei de boa vontade

O conterrâneo encarregado

Vendo a minha realidade

Falou vamos conseguir

O lugar de você dormir

Com um pouco de dignidade

Esperança e ansiedade

Mais forte pude sentir

Quando o encarregado ligou

Ao dono para pedir

Que me permitisse ficar

Ouvi ele permitir

Num sobradinho na obra

Que restou sem demolir

O encarregado contente

Me chamou imediatamente

Para com ele subir

Viu o meu pranto cair

E me disse sorridente

Pode ocupar o sobrado

O tempo suficiente

Para se estruturar

E dar outro passo à frente

Cuide do nosso escritório

À noite principalmente

Dê sempre uma vigiada

Não terá aluguel de nada

Vai morar gratuitamente

Peguei firme no batente

Na semana iniciada

Acordando muito cedo

Dormindo de madrugada

Ajudante de pedreiro

Mas com carteira assinada

Fui poupando o que podia

Da graninha limitada

Aproveitei a ocasião

Para tomar uma decisão

Que deveria ser tomada

Um dia fui à parada

E peguei a lotação

Direto para Campinas

Com a seguinte intenção

Encontrar o taxista

Lhe dar uma satisfação

Agradecer a gentileza

Imensa a minha gratidão

Ninguém soube me informar

Desisti de procurar

Com tristeza e frustração

Resolvi passar então

Lá no bendito lugar

Onde guardei a malinha

E não quiseram me entregar

Me apresentei ao rapaz

Não conseguia se lembrar

Contei a história e falei

Que fui ali lhe pagar

Até que enfim se lembrou

Dei a grana ele aceitou

Depois quis se desculpar

Saí e me pus a pensar

O dever já me lembrou

De ir atrás dos parentes

Lhes dizer o que se passou

Com o auxílio de amigos

A ideia se concretizou

Encontrei o primo Ermírio

Que tudo facilitou

Me levou à Vila Pedroso

E outro primo valioso

Ao me ver se emocionou

Luiz a mim indagou

Preocupado e atencioso

Narrei o que aconteceu

Ele ficou desgostoso

Porque de nada sabia

Falou todo lastimoso

Por eu ter sofrido tanto

Em ambiente perigoso

Me pus a lhe responder

Que ninguém pôde saber

Deste lance tormentoso

Persistente e teimoso

Assim aprendi a ser

Continuei executando

O que eu sabia fazer

Naquela mesma empresa

Que soube me receber

Até concluir as obras

Do prédio que vi nascer

Já era chegada a hora

Me pagou e fui embora

Minha família fui rever

A quem se dispôs a ler

Tenho que informar agora

Em 1982

Que saí Goiás a fora

Na feirinha de alimentos

Detalhes não se decora

A polícia me atendeu

Muito rápido sem demora

O governador de então

Chamava-se Ary Valadão

Que dava cestas outrora

Oiliceg
Enviado por Oiliceg em 21/03/2021
Reeditado em 22/03/2021
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