Sem folia
Por conta da pandemia
Foi-se nosso carnaval
grandioso festival
reinado de alegria
coroado de folia
castelo de onde somos
os patrões e os mordomos
misturados no salão
hoje o reino não tem chão
nem rainhas nem reis momos
Os clarins silenciaram
orquestras emudeceram
pierros enfraqueceram
colombinas se calaram
bêbados doidos tomaram
o trago do abandono
as troças choram sem dono
como criança sem pai
é como um rei que cai
indefeso do seu trono
Nas ladeiras tristes da sé
um pranto verti ainda
pelos olhos de Olinda
mulher rendeira de fé
que calça em cada pé
a noite angelical
porém o tosco punhal
do vírus vil e covarde
dá mil golpes sem alarde
no rosto do carnaval
Dentro dos canaviais
as canas não vertem caldo
este é o triste saldo
de tempos tão infernais
caboclos não dançam mais
a fera quebrou o tabu
e no fundo do baú
escondeu os agasalhos
cravos, lanças e chocalhos
do nosso maracatu
Também as nossas sombrinhas
não enfeitam mais as pistas
tão pouco nossas passistas
não dançam mais vassorinhas
as praças estão sozinhas
sem frevos e sem canções
porque nossos fuliões
estão distantes dos passos
sem beijos e sem abraços
sem blocos e sem cordões
Recife toda soluça
sem sua festa amada
sem galo da madrugada
sem papa angu nem laúça
como moça se debruça
na janela da tristeza
a lágrima está presa
nos olhos do beberibe
que este ano exibe
só lentidão e frieza
Os bares não oferecem
as mesas e as cadeiras
até suas geladeiras
sem movimento perecem
e os balcões permanecem
com os copos emborcados
e talvez alguns trocados
estejam numa gaveta
lembranças dumas gorjetas
de ums carnavais passados
A madrugada é triste
a lua branca é lenta
a voz do vento lamenta
"o carnaval não existe"
porém um sax resiste
no pátio lá da matriz
e toca um frêvo que diz:
"nosso povo é guerreiro"
pois no outro fevereiro
Recife vai ser feliz
Voltarão todos os blocos
como um cortejo fiel
Recife vai ser um céu
com frêvos por todos focos
e se erguerão os copos
dando brindes de folia
o sol abrirá o dia
as ruas serão tomadas
com sombrinhas, com pernadas
na cova da pandemia.