Uma peleja com Zé Bodeiro do Caranã

O lavrado de Roraima

Abriga muitas culturas

Tantas são desconhecidas

Bem como suas figuras

São povos de muitas terras

Seja do campo ou das serras

Que vão gerações futuras.

Tem gente de todo lado

Norte, sul e além-mar

Tem gente que fala rápido

Gente que anda devagar

Tem gente que conta história

Outros têm boa memória

Alguns que querem rimar.

Tem gente de todo jeito

Que decidiu vir pra cá

E trouxeram nas bagagens

As coisas de seu lugar

E tudo isso misturado

Só tem engrossado o caldo

Nos fazendo salutar.

Tem gente que vem de longe

Outros que vem de perto

Mas muitos são sonhadores

Outros errados ou certos

Têm os cheios de direito

Uns com deveres no peito

E os metidos a espertos.

Tem gente que traz saudade

Outros trazem todo mundo

Tem gente que vive só

E amam bem lá no fundo

Tem gente de toda idade

De mentira e de verdade

E os que passam um segundo.

Por isso vim vos contar

A peleja do lavrado

Um Rodrigo de Oliveira

Que tem um certo rimado

Ele faz rima contando

Nos dedos e gaguejando

Mas canta de bom grado.

Mas para este desafio

Tive que mandar recado

Pois ele não aparece

Nem me faz comunicado

Parece até um distante

Ou ele se faz tratante

Que turbina meu rimado.

Até que um dia me veio

Um recado da comadre

Que o viu cedo na feira

E ele jurou com um padre

Que a peleja tá aceita

E eu logo disse, eita!

Chegou hora do enquadre.

O recado que chegou

Tão ligeiro me dizia

“Prepare bem o seu rimado,

pois não gosto de agonia.

Quebro rima do senhor

E não seja roncador

Como gato gordo mia”.

Mas o outro cantador

É muito bem conhecido

Afamado Zé Bodeiro

Um poeta decidido

Repentista de primeira

Do Caranã para a feira

É valente destemido.

E também seu Zé Bodeiro

Me mandou o seu recado

“Se o cantador for o gago

Diga que fique deitado

Dormindo não tem perigo

Pois o besta do Rodrigo

Vai capinar meu roçado.

Mas o tal dia chegou

E eles se encontraram

Apertaram suas mãos

E bem sérios se encararam

Viola com Zé Bodeiro

Oliveira no pandeiro

Eles assim começaram.

Agora sim, meus leitores!

Começou esta peleja

Combinando B com A

Nos trazendo a bem fazeja

No final vamos saber

E certeza conhecer

O fujão dessa verseja.

Zé Bodeiro é cantador

Dessa terra que é bendita

Reside no Caranã

De rimado tem pepita

E quem se atreve com ele

Não consegue esquecer dele

Tem na vida um parasita.

Seu Rodrigo de Oliveira

Bebeu leite de cabrita

De Glória para Roraima

Cantou rima nessa fita

Com ele não tem muito dengo

Quebra Bodeiro no quengo

Pois Zé não berra, só grita.

ZB: Zé Bodeiro quando rima

Chega o povo se levanta

Pois sabe que este véio aqui

É rima forte quando canta

Oliveira, se oriente

Ou diga que tá doente

Vá rezar pra sua Santa!

RO: Oliveira tá aqui

E o povo não se engana

Pois quando ele tá presente

Pega fogo na savana

Bodeiro, volte pra casa

Pois pra tu só vai ter brasa

Corra logo pra Guiana.

ZB: Oliveira, tu é gago

E não sabe nem rimar

Rima troncho afolozado

Que é difícil de falar

Vá prosar com suas plantas

Ou com as formigas e as antas

Que no caminho encontrar.

RO: Bodeiro, muda o teu nome!

Te chama Zé Migué

O enrolão do Cordel

Que não sabe rimar de pé

Parece que engoliu um ovo

Quando de frente com o povo

Que sai falando bé-bé.

ZB: Oliveira, não me invente!

Pois se eu sou um enrolão

Tiro as cordas da viola

E te mostro uma lição

Vosmicê comigo chora

Pois quando a taboca tora

Tu engasga no refrão.

RO: Zé Bodeiro, vá pra casa!

Vá cuidar dos seus bodinhos

Eu sou que nem uma onça

E acabo com tudinho

Vosmicê faça o favor

Digo, pegue seu motor

E parta bem rapidinho.

E nessa hora levantou-se

A mulher de seu Thomé

Logo disse aos cantadores

Pra deixar de reteté

Pediu tema lá e cá

QUE COMECE AGORA JÁ

COM BOLACHA E COM CAFÉ

ZB: Como tareco de manhã

Como cuscuz de culé

Boto comida pros bichos

Vejo quem está de pé

E canto daqui pra lá

QUE COMECE AGORA JÁ

COM BOLACHA E COM CAFÉ

RO: Eu bebo leite da ordenha

E cuscuz como de pé

Faço reza pro meu Deus

Porque sei quem ele é

E depois vou trabalhar

QUE COMECE AGORA JÁ

COM BOLACHA E COM CAFÉ

ZB: Eu trabalho no roçado

Tenho minha própria fé

Chupo cana e assovio

E toco no arrasta-pé

Rimando em todo lugar

QUE COMECE AGORA JÁ

COM BOLACHA E COM CAFÉ

RO: Faço rima de cordel

Bem melhor que você, Zé

Canto as coisas de Roraima

Da farinha ao caimbé

Buriti e tamanduá

QUE COMECE AGORA JÁ

COM BOLACHA E COM CAFÉ

ZB: Canto à minha grande terra

Desde quando era Baré

Bem falo de nossa gente

E da onça e do jacaré

Da Baliza até Cantá

QUE COMECE AGORA JÁ

COM BOLACHA E COM CAFÉ

RO: Batendo no meu pandeiro

Cantei lago e igarapé

Muito andei dum canto a outro

Lá da escola até Javé

E mostrei como rimar

QUE COMECE AGORA JÁ

COM BOLACHA E COM CAFÉ

O que se viu em diante

Foi uma luta acirrada

Um poeta versejando

E o outro na rimada

Era uma luta feroz

E que o povo já sem voz

Aplaudia a pelejada.

Vendo tal situação

Que não tinha vencedor

Bem no meio da plateia

Levantou-se um tocador

Era João de Aparecida

Beato da Mãe querida

Desse bairro morador.

E logo seu João propôs

Que se fizesse outro mote

Pois que esse já tinha feito

Donzela receber dote

Então emendou que agora

Já estava mais que na hora

De tirar ouro do pote.

ZB: Obrigado, seu João Beato

Por usar seu cabeçote

Mudar esse tal rimado

Que já parecia um trote

Mas agora vou mostrar

Pro Oliveira se engasgar

Pois sou cobra dando bote.

RO: Zé Bodeiro, se acalme

Não me provoque um boicote

Não fujo dessa peleja

Pois trago é bomba no pote

Quando menos esperar

O povo vai lhe vaiar

Pois pra bode eu sou coiote.

Vendo que os dois se perderam

A mulher de seu Thomé

Já se levantou de novo

E chamou os dois de pé

- Mudem logo para oitava

Que a plateia já tá brava

Pois meu nome é Salomé.

Os dois logo se lançaram

Começaram bem ligeiro

E seguindo a mesma ordem

Começou seu Zé Bodeiro

Tangendo a sua viola

Seu Oliveira não enrola

E já bate no pandeiro.

ZB: Pois o meu nome é José

Andei no lavrado a pé

E sei bem como é que é

Fazer um verso certeiro

Roço, planto e faço rima

Sei também mudar o clima

Não importa quem tá em cima

No repente sou primeiro.

RO: O meu nome é Oliveira

E desde a hora primeira

Eu só escutei besteira

Que é o Bodeiro rimar

Pois pra todos brilha o sol

Já mostrava o girassol

Do raiar ao arrebol

E vá aprender contar.

ZB: Faço conta de cabeça

Já que você não pareça

Um cantador que mereça

Eu lhe ensino como faz

Conte o tempo na viola

Pois a rima é que nem mola

E se me pedir esmola

Sei que não será capaz.

RO: Bodeiro aqui tu não mente

Que esse povo todo sente

Tu não fica pra semente

Pra saber do outro dia

Faço rima do lavrado

Que se tu é arrochado

Vai fazer esse rimado

Rimando com maestria.

ZB: Se quer falar do lavrado

Lhe mostro que sou honrado

E aceito de bom grado

Pois trago conhecimento

Nas árvores, mirixi

Caimbé e buriti

Paricarana e miri

Sucuba, angico e tento.

RO: Parabéns em responder

Demonstra seu conhecer

Mas eu devo lhe dizer

Que buriti é palmeira

Não tem tronco, mas estipe

Que é mole feito na gripe

Como açaí é d’equipe

Feito coco e bacabeira.

ZB: Tudo bem, vá desculpando

Agradeço admirando

E já vou continuando

Com outras perguntas a mais

Que estão aqui inclusive

E seja então um detetive

Fale os bichos que aqui vive

Me dizendo quem tem mais.

RO: Vosmicê pergunta bem

Mas lhe respondo também

O que a nossa fauna tem

Começo com jabuti

Macaco e tamanduá

Onça, tatu, tracajá

Jacaré, caracará

Mutum, anta e sucuri.

ZB: Pra um gago você tá bem

Mas vamos seguir além

Pra esse povo dar Amém

E para continuar

Deixando povo orgulhoso

Nós seguimos virtuoso

Com xote maravilhoso

Nesse repente embolar.

RO: Tudo certo, Zé Bodeiro

Comece você primeiro

Vá abrindo seu berreiro

Pois eu logo lhe acompanho

Meu pandeiro cadencia

Minha rima com euforia

Dia e noite, noite e dia

Com meus versos sem tamanho.

Os dois poetas fizeram

Uma ferrenha peleja

E depois das oitavas

Foi décima na verseja

E os dois bardos rimaram

Que as pessoas aprovaram

Cantoria sertaneja:

ZB: Meu rimado é correto

Pois tiro o tempo na hora

Canto firme, sou direto

Deixo sentido concreto

E canto pr’ocês agora

O verso ferve na mente

Quando sai pela garganta

O povo todo se encanta

Faço o fácil diferente

Que a plateia se levanta.

RO: Eu versejo este rincão

Na alegria roraimense

Traço o verso num quadrão

E ele volta um refrão

Do calor boa-vistense

É rio, lavrado e serra

Que vos trago na cabeça

Pois eu não quero que esqueça

Do valor da nossa terra

Sem que antes você conheça.

Um rapaz se preocupou

E nos fez um paralelo

Disse que morava no 13

E seu nome era Marcelo

E pediu aos cantadores

Lhes chamando de senhores

Que cantassem em Martelo.

Disse que reforçaria

Inda mais a pelejada

Pois que a décima ficou

Meio estranha na rimada

Os cantadores toparam

Pois com rapaz concordaram

E começou tal parada!

ZB: O repente é pro meu povo daqui

Que você sabe que eu tenho a dizer

Pois eu só sei falar, não sei escrever

Mas o que eu falo um dia já vivi

Fazendo as contas que uma vez perdi

Na mais louca odisseia do lavrado

Pois assim fui puxar o meu arado

Mas cresci me fazendo ser valente

Só a gente sabe o nosso presente

NO MARTELO QUE VOA AGALOPADO.

RO: Meu cordel já nasceu neste rincão

É corisco traçado no papel

É chocalho de cobra cascavel

É a onça rugindo no torrão

Que não pode ver uma ingratidão

Na Ilíada do meu versejado

Pois boi brabo comigo cai deitado

Então faço cordel ser diferente

Canto verso rimado de repente

NO MARTELO QUE VOA AGALOPADO.

ZB: Percorri pelas trilhas norte-sul

Procurando as lições dos ancestrais

Andei de Saruê até Calais

Passei em Pedra Fina e em Istambul

E só vi como céu é todo azul

Voltei pro meu rincão desenganado

E pensei no que estava no recado

Que dizia que é tudo de repente

E meu verso brotou do inconsciente

NO MARTELO QUE VOA AGALOPADO.

RO: Fui em todos os reinos do Cordel

Vi Leandro, Camelo e Minelvino

Pirauá, Milanês e Zé Galdino

Zé Pacheco, Romano e Manuel

Atahyde, Inácio e Rafael

E com todos foi de muito bom grado

Vi Cascudo fazendo versejado

Isso tudo me fez muito contente

Pois meu verso se fez eficiente

NO MARTELO QUE VOA AGALOPADO.

ZB: Boa Vista é terreno de cultura

Coração da memória de Roraima

Chã lendária do mito Makunaima

É Princesa do Norte. Formosura

No Cordel tem sua Literatura

Terra de gente forte e de legado

Que nos faz sempre ser o convidado

E que assim nos quer pra sempre presente

O Cordel se faz todo convincente

NO MARTELO QUE VOA AGALOPADO.

RO: É Roraima um pequeno brasileiro

Cheio de gente de todo lugar

É a fonte de todo versejar

Quem aqui nos faz se sentir primeiro

É de todos nós o grande vanguardeiro

Quando se chega aqui é bem tratado

Pois quem sabe o que leu sem ter cuidado

Agradece por ser um sobrevivente

O Cordel se sente um onipresente

NO MARTELO QUE VOA AGALOPADO.

Esta noite já varava

A madrugada era fria

Mas ninguém dava no pé

A noite virava dia

Pois a verseja era agora

Um festival sem demora

Uma bela cantoria.

E mais pessoas chegavam

Para ver estripulia

Desses dois cantadores

Que tinham muita ousadia

Um tocando no pandeiro

E o outro um violeiro

Canto, verso e poesia.

Dona Salomé enfim

Ficou muito satisfeita

Também seu João Beato

Concordou sem ter suspeita

Decidiram que a rimada

Tava de fato empatada

E pensaram em nova empreita.

Daí os dois cantadores

Encerraram a rimada

O povo aplaudiu de pé

Toda aquela versejada

De Bodeiro e Oliveira

Na qual Boa Vista inteira

Pra sempre ficou lembrada.

Boa Vista, 04 de agosto de 2018

Rodrigo Leonardo Costa de Oliveira
Enviado por Rodrigo Leonardo Costa de Oliveira em 24/05/2020
Reeditado em 08/06/2020
Código do texto: T6956464
Classificação de conteúdo: seguro
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