O ALÉM INVENTADO

Por Gecílio Souza

01. Se a vida após a morte

Fosse assim como se pinta

Jardim da felicidade

Coisa mais bela e distinta

Ninguém temeria morrer

A angústia seria extinta

Quem não desejaria ir logo?

Então prove ou desminta

Todo mundo com a passagem

Querendo fazer a viagem

Antes de atingirem os trinta

02. Por que muitos têm na cinta

Comida, remédio e arma?

Será medo de ir antes

Ou carrega algum karma

De que a morte é tão feroz

Que o traga numa palma

O medo da morte provoca

Insônia e perda da calma

Contradiz as homilias

Pregações de todos os dias

Que ela liberta a alma

03. Muita gente se alarma

Com isto que está lendo

Ninguém jamais provou nada

Mas vai continuar crendo

Também desde que nasceu

Viu e ouviu alguém dizendo

Que depois da morte é bom

Este mundo que é horrendo

Pergunte a quem acredite

Se o tal paraíso existe

Escute e saia correndo

04. Do pastor ou reverendo

Ao fiel meia tigela

Proclamam a salvação

E afirmam crerem nela

Dizem que estão na fila

Serão salvos por tabela

Fazem preces e orações

Jejuam e acendem vela

Mas na iminência da morte

Quem diz ter uma fé forte

Pede ajuda e se amarela

05. Porém o assunto em tela

Motivo desta exposição

Tal qual a filosofia

Quer fazer uma provocação

Um desafio e um convite

Para a boa reflexão

Submeter certas verdades

Ao império da razão

Expor ao juízo interno

Que a ideia Céu-Inferno

É fruto da imaginação

06. Aplausos e admiração

À senhora inteligência

Esta faculdade humana

De elevada excelência

E às pessoas inteligentes

Gratidão e deferência

Eu queria ter conhecido

A seguinte referência

Quem desenhou no caderno

A metáfora Céu-Inferno

Com tamanha competência

07. Habilidade e diligência

Compõem este mecanismo

Mentor de duas estruturas

Repletas de simbolismo

De um lado o paraíso

O perfeito socialismo

E do outro o inferno

Aquele terrível abismo

Quem fez esta alegoria

Bem antes da filosofia

Saudou o maniqueísmo

08. Emblemático dualismo

Verticalmente estruturado

Quem pensou este esquema

Sem dúvidas bem calculado

Fez primeiro o paraíso

Todo belo e elaborado

Depois urdiu o inferno

Com o paraíso comparado

Narrativas babilônicas

Simulações antagônicas

Do mais remoto passado

09. Se o pós morte é um fardo

Como alguns vivem dizendo

O sofrimento na terra

Com o tempo vai crescendo

Morrer seria bem pior

E todos acabam morrendo

Não existe outra saída

A não ser seguir vivendo

Comparada com a eterna

Esta dorzinha é moderna

Mas não dá viver sofrendo

10. Que dilema estupendo

A vida é uma encruzilhada

O pós morte é incógnita

Não pode ser demonstrada

É uma construção mental

Uma aposta arriscada

Viagem da esperança

Que vive desesperada

Se após o falecimento

Existir só sofrimento

A teologia é uma piada

11. Se a morte der para o nada

Como a evidência indica

Um abismo infinito

Que não se sabe onde fica

O certo é que com a morte

O mundo se descomplica

Ninguém morreu e voltou

Para dar alguma dica

A matéria se desagrega

E o falecido sossega

A natureza é que explica

12. Uma estrutura mítica

Feita hierarquicamente

Com a sua lógica interna

Uma descrição contundente

O formato do paraíso

Construído verticalmente

No topo está o criador

Mandando despoticamente

Nesta rígida hierarquia

Há escalas de sabedoria

Na posição descendente

13. Então esquematicamente

Ficou assim definido

Paraíso é um conceito

Espiritualmente concebido

Onde reina o pai eterno

E por ele constituído

Um Éden celestial

Do galardão prometido

Anjos e arcanjos também

Fazem parte do harém

Simbolicamente dividido

14. Ali não é permitido

Nem a ideia de sofrimento

Morrer ninguém morre mais

Acabou-se o tormento

A morte foi derrotada

Pelo arrependimento

As almas circundam a Deus

Perpétuo agradecimento

Não há corpo ou mortuário

Nem tempo nem calendário

Tudo é contentamento

15. Muito além do firmamento

O paradisíaco lugar

Sem o físico para sofrer

Sem corpo para desejar

Findaram-se as diferenças

Sobre o que se imaginar

Alma não posui formato

Nem pode se emocionar

Porque ela é assexuada

Mulher nem homem nem nada

Não há o que diferenciar

16. É um outro patamar

Em torno da divindade

As almas lhe adorando

Com puríssima piedade

Sem trabalho ou esforço

Sua única atividade

É adorar o onipotente

Para toda a eternidade

Portanto quem acredita

Assim pinta e reedita

O conceito de felicidade

17. Prossegue a dualidade

Que a crença instituiu

Se o paraíso é o Éden

Que o próprio Deus construíu

O inferno é o contrário

De tudo que a gente viu

É o reinado de Satã

O anjo mau se emergiu

Ali onde reina o mal

Onde o chefão maioral

Com o criador competiu

18. Quem para o céu não subiu

Por causa da má vivência

Foi se abrigar no inferno

Onde fixou residência

Aquele lugar trevoso

Da máxima maledicência

Um museu do que não presta

Da corrompida essência

Não foi feito de improviso

Contrapõe-se ao paraíso

E à divina sapiência

19. O inferno é sem clemência

Sem piedade e compaixão

Uma espécie de Guantânamo

Ou centro de concentração

Lugar onde os pecadores

Pagam tostão por tostão

Do que fizeram em vida

Por escolha e convicção

Naquelas fornalhas quentes

Com dores e ranger de dentes

Terrível e eterna punição

20. Indignos de absolvição

Pelos atos praticados

Os infelizes pagam o preço

Da multidão de pecados

Lamentando as suas culpas

Não podem ser perdoados

Satanás dá ordens duras

A seus súditos paus mandados

Castigam as almas perdidas

Rejeitadas e desvalidas

Com castigos desgraçados

21. Lá todos são castigados

Com a infernal estrutura

Nos labirintos satânicos

De elevada temperatura

As pobres almas apenadas

Sofrem açoite e tortura

Porque Satã não dá mole

A nenhuma criatura

Que na terra fez o mal

Se considerando o tal

Virou pó na sepultura

22. Dizem que Satã captura

Quem se desvia do caminho

Traçado pelo criador

Que governa o céu sozinho

O tal pecador errante

Perde o amparo e o carinho

Cai no colo do maligno

Que simula ser bonzinho

E enquanto puder viver

Se rebela e logo vai ser

Como uma ave sem ninho

23. Se torna um escravozinho

Do Satanás impiedoso

Porque deixou de seguir

Ao Deus todo poderoso

Porém depois que falece

Cai nos braços do tinhoso

Onde não existe alívio

Ao sofrimento horroroso

Mas nesta concepção

Há flagrante contradição

Ou um furo grandioso

24. Com um juízo criterioso

É possível perceber

Como é contraditório

Quem é esperto pode ver

Se Satanás quer fiéis

Haverá de agradecer

Cada ovelha conquistada

Que Deus conseguiu perder

É um absurdo admitir

Que Satanás irá punir

A quem quer lhe obedecer

25. Ele deve é promover

Alguma festividade

Por ter ganhado uma alma

Sem muita dificuldade

Incontáveis pecadores

Satisfazem a sua vontade

O Satanás não castiga

A quem aderiu à maldade

Não pune os que já são seus

Então quem castiga é Deus

Devido à infidelidade

26. Neste caso a santidade

Fica em má situação

Sendo bom pratica o mal

Punindo o falso cristão

E põe a culpa em Satã

Pela mesma punição

Satã deseja é mais almas

Para isto faz tentação

Ele não pune a ninguém

Portanto pratica o bem

É ou não é contradição?

27. Os que perdem a salvação

No inferno são recebidos

O Satanás os acolhe

E jamais serão punidos

Deus castiga os infiéis

Para voltarem arrependidos

Estes lances incongruentes

Precisam ser discutidos

Satã tenta os corretos

E não pune seus adeptos

Porque já estão garantidos

28. Devem ser esclarecidos

Com clarividência total

Os evidentes paradoxos

Deste esquema surreal

Em que o mau faz o bem

Enquanto o bom faz o mal

Mas existe muita gente

Que acha isto genial

Acredita que o castigo

Deus aplica como amigo

E isto é bom e legal

29. O mundo sobrenatural

Tem esta profunda cisão

De um lado o paraíso

Simbolizando a salvação

E do outro o inferno

Sinônimo de perdição

O paraíso é um prêmio

E o inferno a maldição

Aos espíritos dissidentes

E também quisquer descrentes

Que a Deus disserem NÃO

30. Eis uma grande questão

De origem teológica

Mas por si mesma suscita

A indagação filosófica

Sobre o objeto da crença

Que na essência é simbólica

A concepção Céu-Inferno

É meramente metafórica

Tão antiga quanto o mito

Para assimilar o conflito

Inventaram esta retórica

31. A narrativa histórica

Se contradiz na essência

Tenta dar uma resposta

Aos sonhos e à existência

Mas a crença se afoga

Em sua própria incoerência

Responder ela não pode

Porque não é uma ciência

É fato que o ser humano

Atribui a um outro plano

Quando falta competência

32. Insegurança e carência

Fazem o homem projetar

Alguma espécie de âncora

Para nela se sustentar

A vida é corda estendida

Sobre o abismo singular

O homem é o equilibrista

Que precisa atravessar

Contra o risco desafiador

Busca a força exterior

Tentando não fracassar

33. Para se autoconsolar

Dos sobresaltos da vida

O homem descobre meios

Que lhe sirvam de guarida

Porque a existência humana

Tão dramática e sofrida

A crença no Céu-Inferno

É uma espécie de saída

O antropológico esmero

Para vencer o desespero

Da vivência e da partida

34. A crença constituída

Reflete a necessidade

Dos truques compensatórios

Feitos pela humanidade

Que compensem a angústia

Da dramática realidade

O conceito Céu-Inferno

Gera mais ansiedade

Por ser mera expectativa

Que o religioso cultiva

Da própria religiosidade

35. Falam que a felicidade

Neste mundo é ilusão

Só existem dor e lágrimas

Em cima deste torrão

Que os prazeres da vida

São portas da perdição

Abertas para o inferno

Ao infiel e ao pagão

E que a feliz esperança

Consiste na bem-aventurança

Da eterna salvação

36. Feita esta reflexão

É tempo de concluir

Independente de crenças

Vale a pena refletir

Será que aqueles truques

Não são formas de fugir

Desta dura realidade

Que é a de existir?

Quanto mais se foge dela

Se ergue nova cancela

Impossível de se abrir

Oiliceg
Enviado por Oiliceg em 07/05/2020
Reeditado em 07/05/2020
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