A casa onde morei.
Um vai e vem de cozinha
uma torneira pingando
uma concha ariada
em um balcão enxugando
panos de pratos bordados
sobre copos emborcados
perto dum filtro de vela
vassoura de piaçava
e um cuzido de fava
borbulhando na panela.
Um fio opaco de sol
no cimento desgastado
um silêncio passageiro
cortado por um miado
de um gato assombrado
num taborete trepado
com medo do perdigueiro
um som já bem enfadado
duma vizinha do lado
cantando o dia inteiro.
Um "ô de casa" na porta
um "quem tá lá" respondendo
uns vultos indo e vindo
dumas cortinas tremendo
meia parede na sala
dividindo uma ala
de um quarto de casal
uma cama de patente
alcova de sonho quente
intenso puro e real.
As paredes bem pintadas
com cores vivas vibrantes
o sol ardendo a tarde
nos vidros dos basculantes
um terraço encerado
com o sossego sentado
numa espreguiçadeira
ouvindo de lá a farra
do buzinar da cigarra
no auto da cumeeira.
Na frente um janelão
com a boca escancarada
comendo pó e fumaça
da rua esburacada
uma calçada mal feita
rente a porta estreita
com dois ferrolhos antigos
uma saudade chorando
com as lágrimas pingando
pelos os olhos dos postigos.
Um sofá todo de napa
no cumprido do reboco
uma almofada de pano
branquinha da cor de coco
toalhas velhas e foscas
para espantar as moscas
na hora do bom cochilo
uma garapa de sono
dentro do copo do dono
pra ele sonhar tranquilo.
Petisqueiro envernizado
guardando licor de menta
uma garrafa lotada
com o molho de pimenta
cuscuz galinha guisada
numa mesa animada
transbordando alegria
almoço de prontidão
escutando o carrilhão
batendo ao meio dia.
A jarra e a quartinha
um ferro velho de brasa
uns dentes de alhos soltos
num caneco sem a asa
um pote gordo sozinho
entupido de cominho
na prateleira rachada
num cantinho descoberta
a lata de doce aberta
parecendo dá risada.
Telhados coloniais
pelo o tempo feridos
sobre caibros de canela
com uns arames cumpridos
medindo bem as bitolas
para pendurar gaiolas
qual se fossem candeias
para canarinhos presos
cantarem os seus desprezos
como bardos nas cadeias.
As goiabeiras em flor
perfumando o quintal
cedendo os galhos tortos
pra visita dum pardal
um muro alto além
como se fosse um trem
indo para a estância
da minha recordação
chegando na estação
pelos trilhos da infância.
Para findar ainda resta
a fachada da morada
com avencas nos batentes
decorando a entrada
portão alto e sisudo
com cadeado graúdo
protegendo o jardim
de bromélias saudosas
e um suspirar de rosas
plantadas dentro de mim.