O poeta que virou zumbi no terror da pandemia

CORDEL A QUATRO MÃOS - POETAS FÁBIO MOZART E BENTO JÚNIOR

FM

Um poeta enfraquecido

Meio tonto do juízo

Na Paraíba do Norte

Além de caneiro, liso,

De fiado no comércio

Não comprava nem um frizo

Foi assim, no prejuízo,

Que enfrentou a pandemia

Os dez filhos e a mulher

Lamentavam noite e dia

Precisando de ração

Em uma grande agonia

BJ

Só pensando em fantasia

Vive cheio de mistério

Andando dentro de casa

Lendo livro de adultério

Pensa no coronavírus

Que leva pro cemitério

Ele nem sabe o critério

Nem o seu metabolismo

Se sente o próprio zumbi

Dentro do capitalismo

Sentindo sua injustiça,

Seu desastre e seu sadismo

FM

E nesse imobilismo

O poeta foi ficando

Cada vez mais alterado

O seu sistema mudando

Sete semanas depois

Não dormia, só chorando

Foi aí então que quando

Ele avistou uma rata

Debaixo da sua cama

Trepando com uma barata

Percebeu que estava louco

Em existência abstrata

BJ

Caía uma chuva ingrata

Na cabeça do poeta

Pois, vendo aquela barata

Pensou na ilha de Creta

Dizendo: bicho de asa

Nunca foi a sua meta.

Apontando grande seta

Pra rata que estava em pé

Deu dois pinotes na cama

E saiu cantando “olé”

A pandemia maltrata

Muito mais que a mulher

FM

Ele engole um clister

Sentindo grande soçobro

Sem ter em casa cachaça

afirmou: “não me recobro.

Se eu soubesse que era assim

Teria bebido o dobro”.

Na boca um gosto salobro

Na cabeça uma agonia

O poeta andava à toa

Isso de noite ou de dia

Do quarto para o quintal

Do banheiro para a pia.

BJ

O cabra a graça perdia

Quando mexeu o intestino

A sonda que lavou tudo

Apontava o seu destino

Tudo não passou de um sonho

Na cabeça do menino

Assim José Constantino

Foi ficando igual zumbi

Andando dentro de casa

Cinco noites sem dormir

Ele abriu a geladeira

Pensando em dali fugir.

FM

O óbito a lhe convir

E achava até bonito

A morte sempre é gentil

Com um poeta aflito

Todo poeta que morre

Viaja ao infinito

De repente ouviu-se um grito

Era o poeta cagando

Sei que quebrei o lirismo

Do verso que ia armando

Mas o “parça” é Bento Júnior

Gaiatice no comando

BJ

Fábio Mozart, vá rimando

E deixe de ser gaiato

Você me chama de “parça”

Porque eu narro esse fato

Latindo que nem cachorro

E miando como gato

Sei que o momento é exato

De nos livrar do terror

Me agarro com o bruxo Dalmo

Que é devoto de Xangô

Gravo na Rádio Zumbi

Emissora do autor.

FM

Sem ter anel de doutor

Poeta virou fantasma

Escrevendo um cordel

Em um linguajar de plasma

Espantando a noite débil

Com seu acesso de asma

Vestindo o ectoplasma

Poeta inaugura o mundo

Transforma a realidade

Em suposto céu profundo

Criando até anticorpo

Contra o corona imundo

BJ

Nessa vai e vem profundo

Noite e dia ele sofrendo

Com tristeza no olhar

O rosto empalidecendo

Com dez filhos pra comer

A mulher aborrecendo

Pois assim eu vou vivendo

Sem ter a quem recorrer

Apelo para os amigos

Mas não posso percorrer

Os caminhos do socorro

Vendo a hora perecer.

FM

Depois de muito sofrer

O poeta se inspirou

Passou três dias e noites

Quando sorriu e chorou

De alegria envergonhada

E a vida continuou.

Seu folheto terminou

Dedicado ao bem querer

Sua nega Filomena

Deixou até de beber

Poeta que vence a morte

Precisa nem saber ler.

BJ

A Filomena quis ser

O que nunca tinha sido

Esposa do seu fiel

E dedicado marido

Que antes era devasso

Doido, bêbado e atrevido.

E mesmo desprotegido

Seu lar agora tem paz

Foi o corona quem trouxe

Mesmo sem comida e gás

Assim pensou Filomena

Com o pensar do Satanás.

FM

Na verdade, só se jaz

Quando o ciclo histórico acaba

E só quem pode saber

Quando chega essa diaba

É o próprio indivíduo

Cacique e pajé da taba

A morte chega se baba

Pra matar o poetinha

Mas o poeta não morre

Apenas recolhe a linha

E vai pescar mais além

Da tua vida e da minha.

BJ

Quer retomar a vidinha

Quando essa peste acabar

Tomar um tonel de pinga

Beber até se lascar

E comer a Filomena

Mais um filhote engendrar

Para o nervo acalmar

Liga a televisão

Só sai notícia do vírus

Que dá nó no coração

Mais uma noite sem sono

Mais um tempo de aflição.

FM

Poeta vê ilusão

Um vaga-lume com vela

Um urubu senador

Um Hippocampus de sela

Um político honesto

Olho do cu com remela.

Um bolsominion banguela

Babando feito cadela

Saiu debaixo da cama

Com blusa verde e amarela

Gritando: “Viva meu mito!”

Na caserna se aquartela

BJ

Um poeta tagarela

E pião de carrapeta

Tentando passar recado

Ligeiro feito cometa

Fique em casa! Não relaxe!

Não siga aquele capeta

Pensa que é republiqueta

Essa nação brasileira

Pior é prisão perpétua

Da estúpida cegueira

Poeta pode ser doido

Mas não é burro de viseira.

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 03/05/2020
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