A seca e os Campos de Concentração no Ceará

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Alguns fatos na história

Chamam nossa atenção

Muitas vezes coisas boas

Mas algumas vezes, não,

Pois já houve no Brasil

Um episódio tão vil

Que nos causa indignação.

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Assim como na Alemanha

Ergueram no Ceará

Uns depósitos humanos

Terríveis como os de lá

Era um espaço fechado

Para o povo flagelado

Que ficava ao deus-dará

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A seca, pros nordestinos,

É uma visitante inglória

E desde muito pequenos

Nós já temos na memória

Pois ouvimos os relatos,

Os detalhes tão exatos,

Dessas secas da história

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Já na década primeira

Dos anos mil e seiscentos [1605-1606]

Ocorreu uma estiagem

E com ela sofrimentos

E assim, dessa maneira,

Essa seria a primeira

Registrada em documentos.

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O valente homem do campo

Se levanta bem cedinho

Pa ssa o dia no roçado

Ignora cada espinho

Planta quando a chuva cai

Mas “quando uma seca vai

Outra já vem a caminho”

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E no fim dos anos mil

Oitocentos e setenta [1877-1878-1879]

Ocorreu no Ceará

Outra seca violenta

Que matou bastante gente

De sede, fome ou doente

De mazela pestilenta.

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Nesse tempo Fortaleza

Tinha poucos habitantes

Pouco mais de vinte mil

Porém muitos retirantes

Migraram lá do sertão

Tornando a população

Muito maior do que antes.

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Logo após a grande seca

O então imperador

Procurou amenizar

Toda aquela imensa dor:

E um açude construiu

Mas que quase não serviu

Para o pobre agricultor.

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É porque o açude Cedro

Como iria se chamar

Não foi bem avaliado

Na escolha do lugar

Eu lhe digo, amigo ouvinte,

Só na década de vinte [1924]

Chegaria a sangrar.

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A cruel seca do quinze

Foi fenômeno algoz

Que também pegou em cheio

Os que não tem vez nem voz

Essa seca é mais lembrada

Porque foi bem retratada

Pela Rachel de Queiroz.

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O governo brasileiro

Não mostrava compaixão

Pelo povo mais carente

E não dava condição

Pra resolver o problema

Da pobreza tão extrema

Enfrentada no sertão.

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Dessa vez os governantes

Precisavam ter certeza

De que esses retirantes

Não lotassem Fortaleza

E de forma arquitetada

Deixariam na entrada

Essa gente logo presa.

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Foi então nesse contexto

Em que houve a decisão

De prender os sertanejos

Em precária habitação.

Assim sendo, tão ligeiro,

Construíram o primeiro

Campo de Concentração.

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Terminados os anos vinte

Já havia acontecido

A famosa Belle Époque

Com seu toque exibido

Mas o Excelsior, luxuoso,

Um arranha-céu vultoso

Era, em trinta e um, erguido. [1931]

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No entanto o povo pobre

Sofreria muito, pois

Outra seca ocorreria

Já no ano trinta e dois [1932]

E em termos quase iguais

Construíram mais “currais”

Como se fossem pra bois.

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Trago mais alguns detalhes:

Faço aqui meu relatório

Desse triste episódio

Que deixou traço notório

(Mas em doses tão amargas...)

Que se deu na era Vargas

No Governo Provisório.

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E seria nesse ano

Que tudo se agravaria

Onde em seis municípios

Cearenses ficaria

Implantada na memória

Essa trágica história

Desse povo que sofria.

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Eram dois em Fortaleza:

Matadouro e Urubu.

Mas em Quixeramobim

Cariús, Crato e Ipu,

Cada um tinha o seu

E no Senador Pompeu

Tinha o campo de Patu.

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Poderíamos fazer,

De fato, comparação

Desses campos cearenses

Com um campo alemão...

E completando o cenário

O sistema carcerário

Imitava uma prisão.

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Os famintos sertanejos

Lutavam com muita fé

E à procura de ajuda

Iam em trem ou a pé...

Muitos logo em janeiro

Mas alguns foram, primeiro,

Aguardar por São José.

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Mas depois de ficar clara

A tal seca a porvir

Sem ter mais nenhum recurso

E ninguém pra acudir

Foram pra esses “currais”

Porque já não tinham mais

Nenhum canto para ir...

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Rodeados por arames

E também policiais

Eram feitas nesses campos

Vistorias radicais

Para que não escapasse

Cada pobre que entrasse

Não podia sair mais.

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Nesse tempo já havia

Abundante corrupção

Pois a verba, desviada,

Acabava em outra mão

E faminta, sem comida

Essa gente tão sofrida

Aguardava solução.

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Era grande a multidão

E conforto ninguém tinha

Quanto mais tempo passava

Era mais gente que vinha

A comida era regrada

E mesmo carne estragada

Era o prato da cozinha

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A comida era precária

Os remédios não chegavam

Tinham grupos da igreja

Que se voluntariavam

A cuidar dos flagelados...

Porém atos isolados

Que, contudo, não bastavam.

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As doenças nesses campos

Mereciam atenção

Muita gente enfraquecida

Se espalhava pelo chão

Todo mundo ali sofria

E ao final de cada dia

Aumentava a aflição.

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O esgoto que geravam

Se mantinha descoberto

Isso poluía a água

Que ficava ali tão perto...

Sem apoio necessário

Nesse asilo, tão precário,

A doença era algo certo.

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Dos famintos que chegavam

Muitos já não tinham nada

Alguns nem roupa do corpo

(Que ficara pela estrada...)

E com saco de algodão

Era feita, mesmo à mão,

Uma veste improvisada

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A miséria era total

E no mais cruel modelo

Para os pobres flagelados

Era quase um pesadelo

E cada grupo, ao chegar,

Pra piolho não gerar

Lhes raspavam o cabelo

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Nesses campos cearenses

Muita coisa aconteceu

Não me canso de falar

Como o povo padeceu

Fome e sede atravessou

E mesmo quem escapou

Por bem pouco não morreu.

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A elite não ligava

Pra população carente

E o enorme sofrimento

Na rotina dessa gente

Que de modo tão brutal

Vivia como animal

E morria indigente.

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Nesses tais “currais humanos”

O descaso era notório

Muita gente era enterrada

Numa vala, sem velório,

Mas essa mortalidade

Pros gestores, na verdade,

Era detalhe simplório.

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Mas o povo cearense

É valente e aguerrido

Ergue sempre a cabeça

Com seu jeito extrovertido

Seja adulto ou criança

Nunca perde a esperança

Mesmo sendo oprimido.

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Apesar dessa miséria

E de tudo o que sofria

Esse povo flagelado

Encontrava alegria

Pois à noite eles cantavam

Seus repentes e dançavam

Aquecendo a noite fria.

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G-osto de, com os meus versos,

I-nvocar a nossa história

L-evar para todo mundo

L-ivremente a trajetória

I-sso pra que se conheça...

A-ntes, pois, que alguém esqueça

R-eavivo na memória.

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D-estemidos sertanejos

S-omos um povo potente!

A-o olhamos o passado

N-o contexto do presente

T-emos que buscar o bem

O-lhando pra trás, porém,

S-empre seguindo em frente.