UM POUCO DA VIDA DE JOEL MARINHO
Por Joel Marinho
 
Já escrevi minha História
Porque eu fui “obrigado”
Talvez com medo ou vergonha
Pelas coisas do passado
Por ter nascido na roça
Na choupana, sem sobrado.
 
Hoje não tenho vergonha
Por isso vou escrever
Talvez até eu ajude
Outros, quem sabe você
Que por curiosidade
Pegou isso para ler.
 
Vou tentar me resumir
Mesmo que seja difícil
Pois falar de uma vida
De percalço e sacrifício
É como uma construção
De um grande edifício.
 
Mas vamos lá, meu amigo
Meu nome é Antonio Joel
Depois Marinho de Sousa
Sobrenome no papel
Nascido em setenta e cinco
De um século vinte cruel.
 
Em meio a uma ditadura
No município de Bragança
Nascia lá no Montenegro
Aquela franzina criança
Loirinho, olhos azuis
Que parecia da França.
 
Ao menos é o que mamãe
Relata como lembrança
Que olhava nos meus olhos
Azuis e cheio de esperança
Acho que de tanto olhar
A minha mãe fez lambança.
 
Porque despois que cresci
O tal azul foi embora
Cresceu nariz e orelha
A beleza caiu fora
Só mesmo amor de mãe
Pra ver beleza em mim agora.
 
Mas vamos deixar pra lá
Essa coisa de feiura
Se bem que o que vou falar
É feia, triste e dura
A vida dentro da roça
Não tem nada de candura.
 
Quando me “senti” no mundo
Já foi dentro de uma roça
Com as mãos sendo calejadas
Utilizando a força
Arrebentando a coluna
Com uma vida tão moça.
 
Estudar até pensava
Mas não tinha nem escola
Só depois dos sete anos
Surgia aquela “esmola”
Aprender ler e escrever
E exercitar a cachola.
 
Tinha até a quarta série
Sala multisseriado
Uma única professora
Para moleques atentados
Se não fosse a palmatória
Era feio o esbagaçado.
 
Tive o primeiro contato
Da leitura no papel
Quando vinha o “velho” Chico
Lendo um lindo cordel
Eu ficava imaginado
Ler é um estar no céu.
 
Crescia em mim a vontade
De aprender a leitura
E nisso já caminhava
Pra oito anos a essa altura
E eu querendo estudar
No final da Ditadura.
 
Aos oito anos de idade
Tive o prazer da escola
Mais ou menos uns quinze dias
Tirava dez em qualquer prova
Aprendi ler e escrever
Lia tantas coisas novas.
 
Li muitas vezes a lição
Em voz alta abobalhado
A lição era um tal Beto
Um menino bem levado
Que levou de sua mãe
Um esculacho danado.
 
Eu fui alfabetizado
Já na metade do ano
E fui pra séria primeira
Meio por baixo dos panos
A professora dizia
Ele é bom, não tem engano.
 
Até hoje eu me lembro
Do meu primeiro caderno
Já na minha quarta série
Mais ou menos no inverno
Trabalhei pra minha tia
Era o céu em meio ao inferno.
 
Um caderno e uma caneta
Foi meu grande pagamento
Era de quatro matérias
Que grande acontecimento
Dormi a noite abraçado
Ao caderno em contentamento.
 
E o tempo foi passando
Ali a mim terminou
Ia até a quarta série
As quais passei com louvor
Vinha agora a agonia
Pra onde mesmo que vou.
 
Eu nasci para voar
E ali era uma gaiola
Meus pais ainda hesitaram
Me mandar pra outra escola
Vinte quilômetros de casa
Era dura a vida fora.
 
Tudo a mim era melhor
Do que viver na desgraça
Dia inteiro na roça
Tomando água em cabaça
Sobrevivendo na fome
Me acabando na cachaça.
 
Mas fui morar numa vila
E voltava fim de semana
Para fazer a farinha
Cuidar dos manos e das manas
Quando papai foi embora
E deixou mamãe na choupana.
 
Eu ficava nessa lida
Entre escola e o trabalho
Morando na casa dos outros
Feito carta de baralho
Meu medo ser descartado
E cometer atos falhos.
 
E só depois de um tempo
Mamãe partiu pra Belém
Para juntar-se ao meu pai
Naquele mundo além
Depois eu e meu irmão
Fomos para lá também.
 
Ainda lembro até hoje
Ali na grande cidade
Era carro como os diabo
Um vai e vem sem paragem
Tanta gente misturada
Em desgraça e falsidade.
 
Difícil a adaptação
Abandonei os estudos
Entre o lugar de origem
E aquele mundo sisudo
Eu vivia a oscilar
Pássaro perdido no mundo.
 
E quando o maldito Collor
Assumiu a presidência
Com aquele papo furado
Vou dá-lhes a recompensa
Acabar com os marajás
Que roubam a previdência.
 
Já sabia o que era fome
Não com aquela intensidade
De ver panelas vazias
Mas vazias de verdade
Entra semana, entra mês
E a vida perde a vontade.
 
E sempre que eu podia
Fugia para o interior
Ia pra maldita roça
Trabalhar com meu avô
Pois lá se sobrevivia
Com um pouco de louvor.
 
Também pensava nos manos
Ainda muito crianças
O pouco que se arranjava
Para empurrar na pança
Se eu não tivesse lá
Dava a eles mais esperança.
 
Capinei nosso quintal
Quase a cobra me picou
Mas plantei muitos quiabos
Foi o que a nós salvou
Quiabo era o maná
Talvez foi Deus que mandou.
 
Quando lembro esses momentos
Dessa minha trajetória
Às vezes fico pensando
Por que a nossa memoria
Não é escrito a lápis
Para a borracha ser a glória?
 
As lágrimas descem dos olhos
Ao relembrar esse tempo
Os sentidos são afetados
É um grande sofrimento
Não desejo a ninguém
Esse mundo de tormento.
 
Muitas vezes a cabeça
Pensava em fazer besteira
Porem minha criação
Sempre me dava rasteira
Quando peguei um dinheiro
Fui vender picolé na feira.
 
Aqueles poucos trocados
Ajudava a comprar comida
E assim fomos criados
Entre a morte e a vida
E como é que estuda
Com essa vida sofrida?
 
Nossa casa era um barraco
Coberto com plástico preto
Quando chovia a noite
Molhava, não tinha jeito
Cada um com sua rede
Jogada em cima do peito.
 
O piso não tinha lajota
Era feito de chão batido
Banheiro também não tinha
Para banhar escondido
Nenhuma intimidade
Ficava despercebido.
 
Entre os tipos de trabalho
Que eu tive de exercer
Vendedor de picolé
Torcendo pra não chover
Bombom em parada de ônibus
Tudo pra sobreviver.
 
Eu fui também matador
Um dos melhores de linha
Matava sem piedade
Desde as novas as velhinhas
Antes que você se assombre
Fui matador de galinhas.
 
Enchi serragem em granja
Para um velho “português”
Capinei quintal alheio
Uma coisa a cada vez
O importante era ter
O que comer todo mês.
 
Também fiz jogo do bicho
Aos treze anos de idade
Tinha que lutar bastante
Para sobreviver na cidade
Pois numa cidade grande
Temos menos caridade.
 
Comia banha cozida
Que era para o cachorro
Com um pouco de farinha
Dizia: hoje eu morro
Com uma dor de barriga
Antes do pronto socorro.
 
Vi uma vez minha mãe
Fazer uma divisão
Igual àquela só “vi”
Jesus dividir um pão
Ela dividiu três ovos
Para quase um batalhão.
 
Para falar a verdade
Éramos doze pessoas
Ela com todo carinho
Foi dividir numa boa
E até hoje a agradeço
Obrigado, minha coroa!
 
Em meio a tanta desgraça
Eu inventei de casar
E quase sem proteção
Eu comecei a brincar
Nasceram uns “barrigudinhos”
E eu tive que sustentar.
 
Com certeza pelos três
Não sinto arrependimento
Da besteira que eu fiz
Meu primeiro casamento
Pois não tinha estrutura
E por isso veio os tormentos.
 
Mas vamos deixar um pouco
Essa coisa de família
Para falar dos estudos
Como sair dessa ilha?
Estudar era um problema
Cuidando de filho e filhas.
 
Nesse momento da vida
Eu trabalhava em construção
E a noite estudava
Era um peso do cão
Mas eu nunca desisti
Mesmo o mundo dizendo não.
 
Eu ia de bicicleta
Voltava todo suado
Sentava em minha carteira
Com um sono desgraçado
Porém jamais foge a luta
Se for valente o soldado.
 
E assim eu fui levanto
Terminei o fundamental
Depois o ensino médio
Antigo segundo grau
Que venha o vestibular,
Dizia eu afinal.
 
Mas como que vai passar
Com aquele ensino ralo
Trabalhando o dia inteiro
Como um jumento ou cavalo
Tempo nenhum pra estudo
Nas mãos um monte de calo.
 
Digo a você, meu leitor
Eu não tinha mais esperança
Não via nenhuma luz
No fim do túnel a bonança
Já havia me entregado
Aos laços da desesperança.
 
E por duas vezes tentei
Fazer o vestibular
Geógrafo e pedagogo
Ainda tentei passar
Como o jegue do Luiz Gonzaga
Só entrava pra apanhar.
 
Mais ou menos uns cinco anos
Eu abortei a missão
Pensava comigo mesmo
Não nasci pra isso não
Só passa em vestibular
Quem é filho de “barão”.
 
Um dia reencontrei
Um velho amigo meu
Havíamos estudado juntos
E uma proposta me deu
Para estudar em um cursinho
Aonde tudo se deu.
 
Era um curso popular
Dentro em uma igreja
Foi lá que recomecei
Novamente minha peleja
Pois para vencer precisa
Mirar o que você almeja.
 
Foi um ano bem pesado
Entre curso e construção
Fora as coisas pessoais
Nisso não vou falar não
Já é muito sofrimento
Pra muçulmano ou cristão.
 
Mas enfim chegou o dia
Com o meu nome aprovado
Eu na UFPA
Um sonho realizado
Ouvir meu nome no rádio
Sentimento redobrado.
 
Até hoje quando falo
Sinto o corpo arrepiar
Meu nome sendo chamado
E as lágrimas a rolar
Assim como nesse momento
Em que choro sem parar.
 
Foram cinco longos anos
Para poder me formar
Outra grande emoção
Ver minha família lá
Eu com todo sofrimento
No mais alto patamar.
 
Bacharel licenciado
Ali fazendo História
Meu coração disparado
E eu no topo da glória
Me belisquem, por favor!
Dizia naquela hora.
 
A crise veio em seguida
Depois que a festa passou
Eu já estava formado
Bacharel e professor
Passei também num concurso
E o prefeito não chamou.
 
E só depois de dois
Foi que pude assumir
E durante esses dois anos
Onde é que fui cair
Dentro de uma construção
Sobrevivendo dali.
 
Veio o fim do casamento
Que já estava falido
Me mudei pra construção
Igual um cão combalido
Dormindo em rede molhada
E carapanã nos ouvidos.
 
Mas enfim eu fui nomeado
A prefeitura chamou
Depois eu fiz mais concurso
E hoje olha onde estou
Morando aqui em Manaus
Onde a vida me apontou.
 
E já se vão quatro anos
Morando em outra cidade
Já estou acostumado
Manauara de verdade
Porém jamais eu esqueço
Da minha originalidade.
 
E quando um desavisado
Diz a mim, tu teve sorte
Sobe uma ira da peste
Aquelas quase de morte
Sorte é a “puta que o pariu”
Não bato porque sou forte.
 
Essa aqui, ó meu amigo
É um pouco da minha vida
Se fosse lhe falar tudo
Dessa estrada sofrida
Seria um livro enorme
Uma novela comprida.
 
Por aqui eu me despeço
Deixando a ti um recado
Se queres chegar no topo
Suba os degraus com cuidado
Seja humilde, mas valente
Para deixar seu legado.
 
Nunca dispense ajuda
Nem se escuse de ajudar
Pois a vida é um vai e volta
E até podemos errar
Mas os erros será sempre
Com o intuito de acertar.
 
Não sou um grande exemplo
Talvez a algumas pessoas
Mas procuro repassar
As coisas ruins e boas
Para amigos e parentes
O bem a ninguém enjoa.
 
Não acredito em milagres
Sei que eles nunca vem
Não curto aquelas correntes
E não mando para ninguém
Eu prezo por amizade
Sem maldade ou falsidade
Quem faz o bem, colhe o bem.
 
 INTERAÇÃO COM RUB LEVY

Epopeia esse cordel/
de vida dura e sofrida/
vencida de jeito honesto/
trabalho e sorte vem junto/
e o mundo a favor conspira/
quando se tem fe´ divina.