A VERDADE E A MENTIRA

Por Gecilio Souza

1

Sinceramente não sei

Para onde o mundo gira

Neste vai e vem sem fim

Algo se perde ou se tira

Sem a intervenção da razão

Uma Babel isto ainda vira

O homem é mesmo incauto

Pôs tudo sob sua mira

Aboliu-se a inocência

Contra si próprio conspira

Corrompeu toda a espécie

Na suja alcova delira

Ora é prego, ora é martelo

Estabeleceu-se um duelo

Entre a verdade e a mentira

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A mentira usou a palavra

Fez uma bela exposição

Sou a vedete do mundo

Deusa da ponderação

Nenhuma alma resiste

À minha fina sedução

Controlo com o meu assédio

Do mendigo ao tubarão

Que em alto ou baixo grau

Recorrem à simulação

Sou a força onipresente

Em qualquer ocasião

Meu reino é o mundo inteiro

Não há ninguém verdadeiro

Em cima deste torrão

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A verdade se apresentou

Desenvolta e sem tropeço

Dirigiu-se à plateia

E assim falou: reconheço

Que o mundo me traiu

Deste fato não me esqueço

Ele não é digno de mim

Tal ingratidão não mereço

Mas estou oculta nele

Sem títulos e sem endereço

Jamais ostento poder

Sou nobre e não me ofereço

Deixo a mentira à vontade

Porém mais cedo ou mais tarde

Pode crer que apareço

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Disse a mentira exaltada

A virtude tem limite

Quem de dia me condena

À noite me faz convite

Muitos fazem à luz do dia

Se a ocasião lhe permite

Meu poder é absoluto

Só o ingênuo não admite

A verdade é uma quimera

Um delírio, um palpite

Frequento casebres e mansões

Me hospedo na suíte

Alieno pobres e ricos

Me reproduzo nos fuxicos

Sou madame da elite

5

Fixando-se na mentira

A verdade ergueu a voz

Você tem a perna curta

Embora seja veloz

Na ardileza é uma pulga

Na imponência, albatroz

Vil, furtiva e sorrateira

Dama da malícia atroz

Foge e ladra à distância

É a mais perigosa algoz

Causa tensões e destroços

Capazes de aterrar uma foz

Dificil é a remoção

Dos danos e da destruição

Deste monstro tão feroz

6

A mentira bem irônica

Falou toda sorridente

Parabéns ao populacho

Desta sociedade coerente

Me bajula às escondidas

E me ataca publicamente

Se lambusa no meu sangue

Se banha em água corrente

Respira o meu oxigênio

Faz da moral detergente

Patrocina a avidez

Defende tese decente

Faz apologia da verdade

Admira-a e a aplaude

Na prática a ignora e mente

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Que mentira pretensiosa

Disfarçada e arrogante

Secretária do "capeta"

Notória dama farsante

Padroeira da taverna

Nocivo organismo mutante

Pedagoga do atraso

Espécie de víbora ambulante

É fungo nas estruturas

Da sociedade vacilante

Age com o mesmo vigor

De uma jovem debutante

É mero espectro sardento

Serpente em forma de vento

Sem coração nem semblante

8

A mentira prosseguiu

Sem esboçar constrangimento

Eu permeio a sociedade

No mais ínfimo movimento

Presido templos e palácios

Tribunais e parlamento

A minha lógica interesseira

Molda o bom pronunciamento

Visto terno, túnica e toga

Administro sacramento

Até o sábio Maquiavel

Reconheceu o meu talento

Porquanto a minha autoridade

Regula toda a sociedade

Namoro, família e casamento

9

A verdade disse à mentira

Em você ninguém confia

Ousada e inescrupulosa

A todos você assedia

Para cada mentira dita

Outras mentiras se cria

Tece-se uma complexa rede

Em torno de uma fantasia

Há quem siga sua cartilha

Depois se penitencia

Você nunca dá descanso

À justiça e à psicologia

Ou lhe trata ou lhe apura

Você ama a noite escura

E eu amo a luz do dia

10

Estou na raiz de tudo

Disse a mentira aos gritos

Nem a simples transação

Ignora os meus requisitos

Atuo em todos os negócios

Na filigrana dos seus ritos

O bom êxito justifica

Quaisquer crimes e delitos

A minha nobreza consiste

Em debelar os atritos

O direito é propriedade

De quem impõe os vereditos

Em mim tudo se encerra

Sou eu a causa da guerra

E a resolução dos conflitos

11

A verdade disse, você

Sempre arruinou gerações

Colocou o mundo em risco

Dizimou povos e nações

Nos quatro cantos do globo

Há dores e grandes aflições

Você é a gênese do mal

Que consiste em mil versões

É o luxo dos poderosos

É a miséria dos bolsões

Origem dos cataclismos

Que afligem multidões

A violência que nos assola

Se formou em sua escola

Leva a cabo as suas lições

12

Em tom desafiador

A mentira reagiu

Não tenho culpa se alguém

A minha ajuda pediu

O problema é do esperto

Que em minha trama caiu

Responsabilize o otário

Pois ele é que se iludiu

Eu tão somente executo

O que de mim exigiu

A culpa é do mentiroso

Ele é que se decidiu

Fica aqui o meu protesto

E me mostre um homem honesto

Que na vida nunca mentiu

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A mentira é erva daninha

Capim que infesta a cidade

Nasce e cresce no silêncio

Em altíssima velocidade

A ignorância é seu terreno

Seu Édem de prosperidade

Frutifica em qualquer fenda

Nas frestas da intimidade

É herdeira do silêncio

Avó da cumplicidade

De longe ou ao pé do ouvido

Reverbera a maldade

Sou coerente e não minto

Você é um paradoxo sucinto

Que às vezes fala verdade

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A mentira se levantou

E deu um murro na mesa

Exijo que me respeitem

Afinal sou uma princesa

Oriento a qualquer homem

Assessoro a toda empresa

No lusco fusco da noite

Mantenho a minha vela acesa

Tenho o poder de ubiquidade

A lugar algum estou presa

Transito pelo banditismo

Saio tranquila e ilesa

E posso até lhe garantir

Que o ato de mentir

É um mecanismo de defesa

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Dirigindo-se à mentira

A verdade denunciou

Você é uma ré confessa

Graves crimes confessou

Sou a justa reposição

Do bem que você frustrou

Restituo à humanidade

O valor que dela tirou

Meu epíteto é segurança

Justiça e paz também sou

Me chamam de equidade

Contra a qual você lutou

Se é que existe o diabo

É o mentiro de chifre e rabo

Seu ex que a abandonou

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A mentira deu sequência

Justificando o seu pleito

Presto auxílio a qualquer um

Deixo o freguês satisfeito

Executo qualquer pacto

Nenhuma proposta injeito

Meu trabalho é incansável

Não durmo e sequer me deito

O impacto dos meus planos

Foi uma opção do sujeito

Então não posso aceitar

Tanto estigma e preconceito

Tenho a minha autoridade

E as ilações da verdade

As devolvo e não aceito

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Você é o húmus da morte

Engenhoca da falsidade

Faz dueto com a preguiça

Em funesta musicalidade

De qualquer acontecimento

Expõe somente a metade

Omite ou altera o contexto

E subverte a realidade

Aos simples você é pimenta

Que na consciência arde

Matriarca da hipocrisia

Livre amparo do covarde

Precursora da malandragem

Pois é preciso coragem

Para estar com a verdade

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A mentira então falou

Sou as TVs e os jornais

A farsa governa o mundo

Desde épocas primordiais

Todos louvam a verdade

Neste aspecto são iguais

E esta é a recomendação

Que os filhos herdam dos pais

Mas ela é um obstáculo

Aos interesses pessoais

Nas palavras e nas ações

Ocultam-se os meus sinais

No final sou eu que venço

Chorem que empresto um lenço

Pobres hipócritas mortais

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A verdade respondeu

Com tenaz convicção

Mentira você é a síntise

Da absurda contradição

Que permeia as entranhas

Mais íntimas da civilização

Em todo o processo histórico

Sofreu intensa rejeição

Veja algumas celebridades

Que lhe fizeram objeção

Pensadores da filosofia

E líderes de espectro cristão

Sócrates, Agostinho e Plotino

Aristóteles e Tomás de Aquino

Kant, Nietzsche e Platão

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Não reconheço a verdade

Como precursora da luz

Ela é sonho dos ingênuos

Impressiona mas não seduz

Enaltecida por todos

Em ações não se traduz

Na efetividade da vida

É mera teoria que induz

Veja a estética social

E descubra quem a conduz

Tudo tem o meu controle

O que faço ela reproduz

Conforme a história reputa

Matei um sábio com cicuta

Condenei um homem à cruz.

21

Você é o pivô das crises

De todo desassossego

Move o vírus capitalista

E justifica o desemprego

Sanguessuga social

É vampiro, é morcego

É religião da muamba

É sindicato pelego

Se abriga em partidos

O poder é seu apego

Quantas vítimas de sua trama

Me buscam pedindo a rego

Toda mentira tem fim

E aos que acreditam em mim

Posso até tardar, mas chego

Oiliceg
Enviado por Oiliceg em 12/12/2018
Reeditado em 22/02/2019
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