O coveiro do diabo.
Desliguei o aparelho
Para interromper a vida
Mas olhando em um espelho
Nele eu vi minha partida
E ouvi esse conselho
Tudo é parte da subida.
Vi meus lábios ressecarem
Vi meus olhos se fecharem
Vi meus filhos se abraçarem
Vi vizinhos comentarem
Vi parentes confessarem
Que desejam o que falarem.
Vendo o tempo que passou
Tempo que a tudo cura
Ninguém sabe quem eu sou
Desconhece a desventura
No lugar aonde estou
Sou chamado linha dura.
Minha mãe muito sofreu
Das mazelas que criei
Ela assim me protegeu
Mas eu não me eduquei
Exigi o que era meu
Mas comprei e não paguei.
Fui levado ao hospital
Que parece um purgatório
La alguém punha um sinal
Em quem vai pro sanatório
Antes da hora final
É levado ao crematório.
Vi a vida como sendo
Campo de experiência
Muitos crimes cometendo
Sempre em nome da ciência
Os amigos corrompendo
Exigindo competência.
Fui severo cumpridor
Das missões que aceitei
E também provoquei dor
Muitos eu sacrifiquei
Também fui consolador
Das mortes que provoquei.
Meus amigos me chamavam
De coveiro do diabo
De mim nunca reclamavam
Cada um tinha o seu rabo
Em geral me abraçavam
Pois de vidas davam cabo.
Fiquei velho e alquebrado
Aa saúde fracassou
Os meus olhos embaçados
O saber se afastou
O amigo, se indagado,
De mim nunca se lembrou.
Fui aos poucos definhando
Vendo o meu tempo passar
Pouco a pouco me lembrando
Do que fiz pra me gabar
E a mim mesmo cobrando
Sem saber como saldar.
Descobri que era tarde
Quando vi o meu caminho
Eu que sempre fiz alarde
Ia caminhar sozinho
Alguém disse me aguarde
Isso disse um passarinho.
Nesse meu caminho escuro
Eu já vivo eternamente
No meu proceder impuro
Neguei vida ao inocente
Hoje eu pago com juro
O que fiz com o doente.
Deixei tudo que juntei
Nada trouxe pra viver
Todo mau que pratiquei
Não consigo esquecer
No viver eu fracassei
E vou ter de refazer.
Refazer o lar caído
Refazer a foz do rio
Refazer o esquecido
Cultivar chão de estio
Entregar para o bandido
O agasalho no frio.
Esse frio eu reconheço
Nele está o cobertor
O calor que não tem preço
Só existe no amor
Ante ele eu compareço
Para implorar calor.
Peço a Deus pra me ouvir
Peço pra me perdoar
No momento de partir
Pedirei pra retornar
Para aqui poder servir
Sem ninguém a criticar.
No final a paciência
De quem teima em me ouvir
Mostrará a consciência
De quem pede para vir
Ao lugar da resistência
Onde o lema e só servir.