CORDEL DAS DIFERENÇAS
Um dia fui João,
n’outro fui José,
escravo da paixão,
de outras dei no pé...
Diziam: é ator...
Outros: impostor...
Mentiroso, eu,
dizia: sou Deus...
Casei, Maria era ela,
mulher de altos dotes,
de contas e de panela,
fui, sim, homem de sorte...
Dois filhos, Ana e Heitor,
ela, doce de menina,
ele, um verdadeiro furor,
filhos?, destino e sina...
Amor não é para sempre,
o coração muda de rumo,
há algo muito diferente
no bojo da palavra prumo...
Ana, minha doce pequena,
deu de ler poesias e de cantar,
cortou bem rente suas melenas,
sonhou andar mundo pelo mar...
Entrou casa adentro as amigas,
menino na corte nem pensar,
nunca vi nenhuma rusga,
juntas em sonhos a viajar...
Nem bem chegou ao vinte
fez as malas rumo à casa do Tio Sam,
falou de caso pensado, sem acinte,
volto depois, menos amanhã...
Tudo que é justo se aceita,
pai e mãe tem de se ajustar,
a vida não é uma coisa feita,
maquete de um só pensar...
Heitor pintou em telas
suas viagens interiores,
longe dele as panelas,
só paleta de mil cores...
A casa quase doido ateliê,
modelos aos traços posando,
chamava a gente pra ver
os quadros que ia pintando...
Deu de expor as obras
até ser chamado pelas galerias,
alma como a dele tinha sobras
a quem se achegava e o via...
Chegou um dia de braços dados
e nos apresentou Adamastor,
respeitosamente, seu amado,
que à minha Maria deu uma flor...
Tudo que se sabe pode um dia mudar
como se muda o leito de um rio,
o rio se torna outro nos braços do mar,
depois do calor do inverno o frio...
Depois de anos nos deu ele e seu parceiro
um filho que adotaram por nobre atitude,
um menino abandonado num velho terreiro
que escapou da tragédia e conheceu a virtude...
A nossa doce Ana chegou para um passeio,
trouxe com ela Scarlet, professora e atriz,
além das duas com elas John Paul veio,
adotado em Uganda, resgatado e feliz...
Maria, forte e sábia, dona da casa,
árvore de mil folhas e sapiência,
sabia que a vida não é poça rasa,
nem mágica de cartola, nem só ciência...
Eu, que diziam ser um ator,
vi que a vida via o que eu enxergava,
pólen fui numa flor chamada amor,
vim dos confins de uma estrela rara...
Com Maria a essência do Paraíso
na justeza do encanto da liberdade,
a precisão do relógio do juízo
em nome da saga da verdade...
A palavra igual é como a diferente
que trata de assuntos iguais a tanta gente,
e nas diferenças que existem na igualdade
hão coisas diferentes como a tal lealdade...
Salve, poeta brasileiro, tão sacrificado,
canto este cordel na vontade de te dar
mais um sobrenome a teu nome tão falado,
a diferença é a igualdade quando se quer amar
cantando um cordel de um jeito tão danado...