O CORDEL DE TODO DIA
O olho que cede à luz,
Há pouco, na paz dormia;
Sonhava com areia quente,
sol latente, maresia;
Despertado de repente,
Só resta seguir em frente:
Sobreviver mais um dia.
Ainda bem relutante,
Mil rotas de fuga cria;
Todas o levam, turrante,
Ao encontro da agua fria;
Hoje, muito mais que antes,
Tem um desejo constante:
Sobreviver mais um dia.
Diante do velho armário,
Escolhe a roupa num passe;
Contempla seu relicário
Como se forças buscasse;
Sobreviver mais um dia
É o que lhe traz alegria;
Não se permite o empasse.
Na condução, apertado,
Nada pode negociar;
Na busca do seu legado,
A premissa é trabalhar;
Sabendo da causa o fado,
Segue em frente, obstinado:
Mais um dia conquistar.
Lidar com mil afazeres
É parte da profissão;
Antes vivia os prazeres
Sem rumo, sem direção,
Hoje percorre os alqueires:
Sorri e ama outros seres
Com total satisfação.
Almoço é bom com os amigos:
Papear, comer, beber,
Matar a fome, a sede,
E retornar ao dever;
Nada novo, nada antigo:
Vai evitando os perigos,
Pra mais um dia vencer.
A tarde chega ao cordel
Trazendo nuvens rasteiras;
Cercado de arranha-céus,
Segue a sonhar com a ribeira;
Caneta sobre o papel,
D'outro dia tira o véu,
Numa vitória certeira.
Estrelas brotam no sul
Quando, enfim, vem a alforria;
Imenso sorriso nu
Resulta dessa ousadia
De alçar um vôo no azul
Entre gaviões e urubus
Pra conquistar mais um dia.
E assim decidido vai
à procura do existir.
Ontem já ficou pra trás...
Amanhã ainda está por vir;
Seu compromisso é o agora:
- Olha só, são zero hora!
Mais um dia... Consegui!