Pai Francisco
(16/09/2018)
Um dia, alhures, há tempos atrás
Ali pelas bandas de Carinhanha
Nascia um jovem, negro e sagaz
Que realizaria extrema façanha
Filho de escravos, escravo liberto
Aprendeu com seu pai a ser boiadeiro
E tinha um talento, quase magia
Pois se um boi novo um dia fugia
Não carecia nenhum provimento
Tirava do saco a sua viola
Tocava uma moda e lá vinha o rebento
Era protegido do Sinhô Geraldo
Dono de terra, de gente e de gado
Que via a face de um filho no moço
Pois deu-lhe emprego, paga e moradia
E todo domingo, na hora do almoço
Sentava com ele à mesa e comia
Depois lhe pedia, causando alvoroço
“Toque, Francisco, uma melodia”
E ali trabalhava uma bela menina
Negra também, de nome Catirina
Que o coração de Francisco roubou
E teve casório, e teve festança
Francisco tocava pro povo, pra dança.
Foram morar lá perto do morro
Em casa erguida com muito carinho
Que deu-lhes Geraldo, agora padrinho
Passados uns meses Catirina lhe diz
“Querido vem cá, lhe tenho uma nova
Que tenho certeza, lhe fará feliz:
Seu nome agora será Pai Francisco
Pois com você um filho eu fiz”.
“Aproveito o ensejo e te peço um desejo
Eu quero uma língua, mas língua de gado
Cozida ou assada, ensopada ou grelhada
Não faça seu filho nascer alterado
Trazendo consigo uma cara engraçada”
Assim Pai Francisco saciou tal anseio:
Um boi do patrão, partiu-o ao meio
A língua assou pra sua criança
E o resto do boi deu pra vizinhança
No fim só sobrou o que não tinha encanto
Uns ossos, os chifres e um pedaço do rabo
Que foram jogados de lado num canto
“Se ninguém quis, dou deles um cabo”
Mas o Pai Francisco era moço direito
E logo bateu-lhe um aperto no peito
“Peguei uma coisa e sem permissão...”
Ficou remoendo sua transgressão.
Não sei se por medo, talvez por vergonha
Se foi Pai Francisco e Mãe Catirina
Mudados pra longe, lá pra Pariconha
O que não se sabia é que o boi do Geraldo
Era coisa importante, bicho premiado
Era xodó, era coisa querida o coitado
E o Seu Geraldo já fulo da vida, gritava alterado
Chamou o Seu Bispo e o Seu Delegado
“Prenda esse moço, esse desaforado
Matou o meu boi e mudou-se de Estado”...
Filho de Francisco nasceu e cresceu
Moleque viçoso, todo espevitado
Pulava, corria, gritava e bulia
Da mãe, se notava, a mesma beleza
Do pai, o menino herdara a magia.
E um dia contou-lhes o sonho que teve
Que ao pai e à mãe causou-lhes surpresa:
De um boi sem rabo, sem chifre e sem osso
Que lhe implorava: “Vem, volte pra casa”
“Me ajude a sair do fundo do poço”
E o menino insistia, fazia até manha,
Pra irem de volta lá pra Carinhanha
Francisco sabia: Não sairia ileso
O povo falava, não era segredo
Ouviu-se a história: ele seria preso!
Mas o Pai Francisco era homem honrado
Pegou suas malas, seu filho, sua nega
Foi resolver o que fez de errado
E foi por um fim naquela sua pega.
“Pai Francisco voltou!”, correu a notícia
E vendo Geraldo tamanha ousadia
Mandou seu capanga chamar a polícia
“Mataste o meu boi, me roubaste a alegria
E só um descarado faz tal estrepolia”.
Mas o menininho, deu passo a frente
Falou como homem na frente da gente:
“Meu pai retornou pra por fim a sua sina
A culpa foi minha pelo grande apetite
Que dei a minha mãe por língua bovina
Vamos reparar esse erro, acredite
Só tenha paciência e espere um instante.”
Assim o menino pediu para o povo
Que as sobras do boi ajuntassem de novo
E foi empilhando, osso por osso
Por cima o chifre e um couro grosso
E pegou o rabo, soprou uma vez
Depois soprou duas, por fim soprou três
E debaixo do couro, causando sobrosso
Renasce o bicho, revive a rês.
Correndo do touro pra não ser chifrado
Geraldo lhe grita:
“Meu filho Francisco cê tá perdoado!”
Por fim com o boi já preso no curral
Geraldo convida o povo em geral
Pra ir pra sua casa: Vai ter arraial
“Vai ter a bebida, vai ter do curau
Vai ter Pai Francisco e seu recital”
Mas sem saber tudo, o tal Delegado,
Ouviu que Francisco tinha retornado
Pro seu ajudante, lhe deu um facão
E foi-se pra festa de arma na mão
E em lá chegando já viu Pai Francisco
No meio do povo, no meio da roda
Dançando, cantando, com seu violão.
“Vem cá seu safado, cê será julgado
Mataste um bezerro que era campeão
Eu tenho certeza, vais ser condenado
Daqui desta festa tu vais pra prisão”
Então seu Geraldo de pronto interveio
“Sinhô Delegado, tá tudo acertado
O boi tá é vivo, lá no meu cercado
Se achegue pra festa, não tenha receio
Quando tiver roda, o senhor dança no meio”
E esta é a origem da festa do Bumba-Meu-Boi
Só sabe que é bom quem um dia já foi
Francisco tocava, Geraldo sorria
E aquela cidade era só alegria
E ganhou apelido o “Dotô” Delegado
Dançando na roda, bem desengonçado.
(Baseado na lenda do Bumba-meu-boi e
na cantiga de roda:
"Pai Francisco entrou na roda
Tocando seu violão
(Balalan, ban, ban, ban, ban)
Vem de lá seu delegado
E o Pai Francisco foi pra prisão
Como ele vem todo requebrado
Parece um boneco desengonçado")