A LONGA SEXTA DA PAIXÃO

Por Gecílio Souza

A filosofia é uma deusa

Rainha da interrogação

Há muito tempo integra

O mais alto panteão

Sócrates é considerado

Da sofia a encarnação

Em seu nome ele fez

Impactante exposição

Que abalou as estruturas

Da sociedade de então

Irritou os poderosos

E governantes de plantão

Pôs em xeque o Estado

E sua débil fundação

Se fez alvo de um complô

De sólida penetração

Nos meandros sociais

Vulneráveis à manipulação

Contra ele assim forjaram

A mais sórdida acusação

De corromper a juventude

E violar a convenção

Praticar a impiedade

Crime de insubordinação

Por não reconhecer os deuses

Impostos como obrigação

Pela teologia estatal

Aparelho de alienação

Eis que Sócrates inaugura

Uma nova concepção

De mundo e de sociedade

De homem e de educação

O método do conhecimento

É a conhecida introspecção

As elites interpretaram

Como gravíssima agressão

Levaram-no aos tribunais

Numa inédita armação

O Estado se mobilizou

Com a fúria de um dragão

Para enfrentar um homem só

Que ameaçava a nação

Um devoto de sofia

Cuja arma era a razão

Aliada da maiêutica

Estopim da convulsão

Que precipitou nos jovens

Silenciosa rebelião

Os “aplicadores” da lei

Intérpretes da constituição

Numa espúria aliança

Com os meios de comunicação

Friamente esboçaram

A mais violenta reação

Porque os próprios juizes

Eram do primeiro escalão

Que compunham as elites

Com o judiciário na mão

Revogaram as garantias

Inverteram-lhe a presunção

Presumiram-lhe culpado

Sem base ou comprovação

Incitaram o ódio público

Atiraram Díke ao chão

Fabricaram um processo

Genoma da falsificação

Delirante ilegalidade

Pior peça de ficção

Os próprios acusadores

Fixaram a condenação

Pena de morte a Sócrates

Sem indulto ou apelação

Conforme as leis de Atenas

Que abriam uma exceção

Pagar multa e fugir

Quer dizer, retratação

Declarando-se culpado

Sem crime e/ou infração

Sócrates não capitulou-se

Não fez genuflexão

Aos seus verdugos togados

Ávidos por repercussão

Hematófagos batizados

Com a alma em extrema unção

O forçaram a beber cicuta

E houve a consumação

Assassinaram o filósofo

Perduraram sua lição

Multiplicaram-se os Sócrates

Depois da execução

A filosofia resistiu

Aos ataques do canhão

Ela é uma deusa imortal

Que radicaliza a tensão

É uma dádiva do além

Conforme afirmou Platão

Trata-se de um privilégio

Inacessível à multidão

É a transparência epistêmica

Que revoga a opinião

Estabelece as fronteiras

Entre o real e a ilusão

Não aprisiona a verdade

Se abre à ponderação

O pseudo prazer das trevas

Dá uma falsa sensação

De felicidade efêmera

Que perece na escuridão

Quem se evade da caverna

Paga o preço da libertação

O filosofar é dinâmico

Avança na provocação

Surge da perplexidade

Da intensa estupefação

Aristóteles sabiamente

Deu-lhe tal conceituação

Se assustar com o trivial

É se pôr à disposição

No ordinário se esconde

O cerne da indagação

Perscrutar a realidade

Exige concentração

Analisar os detalhes

É assumir uma posição

De maestro dos saberes

Que formam uma constelação

Filosofia, ciência e arte

A técnica e a representação

Compõem a sabedoria

Admirável composição

Nas entranhas do “normal”

Oculta-se a deformação

A normalidade patológica

Gera a moral da aberração

Filosofar é tirar o véu

A cortina da impressão

Pensar é resgatar a essência

Sem truque ou tapeação

São setas que se atiram

Em toda e qualquer direção

O mundo é um instrumento

Com mais de uma afinação

A filosofia vai ao fundo

Demole a bajulação

Por isto parece indigesta

A quem não tem vocação

Ela revoga os extremos

Ilumina o pensar e a ação

O sábio estima a ética

E age com moderação

Inspira a ciência política

A pólis é uma construção

Arena do bem estar

Da humana realização

A metafísica explica os seres

Que acima da lua estão

Cá no mundo sublunar

Há outra movimentação

A filosofia desaponta

Quem vive na servidão

Das posses e das riquezas

E da fútil ostentação

Porque ela intercepta

A histórica contradição

Que permeia a humanidade

E prende o homem num quinhão

E assim a filosofia

Tem sua própria gradação

Se replica na boca dos mestres

Difere-se na conotação

Pelas bandas do Oriente

Cultuam-se um certo varão

Denominado Messias

Com uma divina missão

Nasce então o cristianismo

Código, doutrina e sermão

Um novo modo de vida

Sob a égide da comunhão

E então o “filho do Pai”

Tomou pé da situação

Vendo a realidade do povo

Radicalizou a pregação

Denunciou injustiças

Condenou a exploração

Atacou os exploradores

Com severa admoestação

Amaldiçoou a ganância

Evocou a tradição

Se definiu pelos fracos

Por quem fez uma opção

Perdoou a prostituta

Dialogou com o ladrão

Amparou o mendigo e a viúva

Sem preconceito ou acepção

Acolheu o estrangeiro

Com elegante recepção

Socorreu quem tinha fome

Multiplicou peixe e pão

Visitou doentes e presos

Aos aflitos deu consolação

Reverenciou as mulheres

Vetou a discriminação

Pelas crianças e os idosos

Demonstrava predileção

Perante os deficientes

Extravasava a emoção

Desagradou os poderosos

Que odeiam a oposição

Aplicaram todos os meios

Da chantagem à extorsão

Mas o divino redentor

Endureceu a objeção

Não poupava a classe alta

Nem durante a refeição

A extrema desigualdade

Lhe causava preocupação

Não tardou e a elite

Planejou a reedição

Do processo contra Sócrates

Notabilizada podridão

Repetiram as patranhas

Plantadas na ilação

O Estado e os poderosos

Deflagraram uma operação

Acusado de vários crimes

Entre os quais a corrupção

Desestabilizador social

Líder da subversão

Para capturar o Messias

Designaram um centurião

O levaram a Pôncio Pilatos

Para a longa interrogação

Sentenciado e condenado

Pilatos que era um cagão

Subiu no muro e se esquivou

Por estratégia ou lassidão

Custou caro ao nazareno

Esta histórica omissão

Pilatos, raposa política

Não tomou uma decisão

Que certamente evitaria

A famosa crucificação

Executaram J.C.

Sem qualquer apiedação

Eis que um fenômeno se dá

Conforme a bíblica narração

Após três dias ressuscita

Em apoteótica ascensão

Derrotando a própria morte

Por meio da ressurreição

Os seus admiradores

Formaram uma legião

E então foi deflagrada

A doutrina do cristão

Desde a era medieval

Houve uma perversão

Adveio a modernidade

Virou uma esculhambação

Segmentos religiosos

Miram a arrecadação

A teologia da prosperidade

É uma indústria do cão

A bíblia debaixo do braço

Mas nos olhos há o cifrão

Não se falam mais em mil

A sua tônica é o milhão

Se emancebaram com o Estado

Numa “santa” prostituição

É de encantar o satanás

Essa nova religião

São centros comerciais

Do pentecostalismo pagão

Ali se vende o escambal

À vista, no cheque ou cartão

São feiras onde há de tudo

De tudo mesmo não

Porque ali faltam Deus

O amor e a compreensão

Inexistem a tolerância

O altruísmo e o perdão

Discriminam as maiorias

Que têm outra definição

Julgam mal quem lhes opõe

E veda a mercantilização

Do culto, da graça e da fé

E da abstrata oração

O seu Deus é capitalista

Que abençoa a concentração

Acumulam poder e dinheiro

Têm fazendas e mansão

Têm filhos extraconjugais

Sonegam impostos e pensão

Seus projetos legitimam

A fraude e a espoliação

Discursam contra o aborto

Com ira e convicção

Mas defendem a pena de morte

Agridem o negro e o ancião

Crucificam Jesus Cristo

Quando odeiam o irmão

Por isto o ano inteiro

É sexta feira da paixão

E você, meu caro leitor

Tire sua própria conclusão.

Oiliceg
Enviado por Oiliceg em 31/03/2018
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