O dia em que o diabo pediu arrego
Eu estava sentado num banquinho
Descansando na sombra da jaqueira
Desfiava tabaco com a peixeira
Pra fazer um gostoso cigarrinho
Quando olhei, vinha vindo no caminho
Um sujeito montado num jumento
Eu parei de olhar por um momento
Procurando no bolso o meu isqueiro
Ao olhar, não vi mais o forasteiro
E me veio um estranho pensamento
Se ele vinha em meio a um descampado
Não havia onde ele se ocultar
Eu senti meu cabelo arrepiar
E rezei um Pai Nosso devotado
Pois se fosse artimanha do “coisado”
A defesa melhor é a oração
Como eu sempre fui um bom cristão
Apelei para Deus me proteger
Se o sujeito voltasse a aparecer
Talvez eu precisasse proteção
De repente eu notei um pé-de-vento
Levantando a poeira do caminho
Que formou um grande redemoinho
E ouvi o zurrado do jumento
Quando, então, levantei do meu assento
O sujeito já estava do meu lado
Por um tempo eu fiquei paralisado
Pois temia ser arte do chifrudo
Por instantes, ali, eu fiquei mudo
E, dos pés à cabeça, arrepiado
Eu, então, dei bom dia ao visitante
Segurando, no bolso, um crucifixo
Sobre ele, mantive o olhar fixo
E notei um sorriso petulante
Ele disse que era um viajante
Que estava à procura de um parente
Ao notar seu sotaque diferente
Quis saber o lugar de onde ele vinha
E ali, qual parente é que ele tinha
Porque lá não morava muita gente
Eu também perguntei pelo jumento
Sobre o qual ele vinha viajando
Ele disse – O jumento está pastando
Pois estava carente de alimento
O calor o deixou, também, sedento
E o soltei para achar onde beber
Logo, logo ele vai aparecer
Porque é um bichinho adestrado
Que eu podia ficar bem sossegado
Que o jumento não ia se perder
Eu voltei a cobrá-lo, novamente
Sobre quem ele estava procurando
Percebi que ficou me enrolando
Sem dizer qual o nome do parente
Comentou que o sol estava quente
E queria um lugar pra descansar
E então começou a insinuar
Que eu devia levá-lo à minha casa
Pois ali tava quente feito brasa
E na casa é melhor pra conversar
Eu não quis parecer mal-educado
E levei o sujeito até meu lar
Convidei-o, então, para sentar
Mas, alerta e também desconfiado
Eu já tinha meu plano preparado
Se ele fosse quem eu tava pensando
E se eu fosse quem tava procurando
Não iria pegar-me de surpresa
Pois eu tinha meu kit de defesa
Com o qual ele não tava contando
Ele disse que tudo o que queria
Era um copo de água pra beber
E depois qualquer coisa pra comer
Pois estava em jejum naquele dia
E depois de um descanso partiria
E num canto da sala se sentou
Eu pensei – minha hora já chegou
E, então, dei-lhe um copo de água benta
Ao beber, botou fogo pela venta
E em poucos instantes desmaiou
Ao cair, seu chapéu escorregou
E dois chifres, na testa, apareceram
Suas unhas, parece que cresceram
Porque eu não notei quando chegou
Um cotoco de rabo se mostrou
Quando eu lhe amarrei as mãos pra trás
Eu, agora, não tinha dúvida mais
E o peei com um Cordão de São Francisco
Não iria correr mais nenhum risco
Pois o cara era mesmo o satanás
Amarrei-o num pé de sabugueiro
Com uma cruz pendurada no pescoço
Espalhei, ao redor, muito sal grosso
Desenhei pentagramas no terreiro
Sou devoto de São Jorge Guerreiro
E, pro santo, fiz logo uma oração
A Jesus pedi muita proteção
Mas, também, pus uns galhos de arruda
Quando eu ia à procura de ajuda
O demônio acordou em convulsão
Quando, em vão, procurava se soltar
Ele urrava, gritava e até gemia
E enquanto ele ali se contorcia
As narinas ficaram a dilatar
Os ouvidos pegaram a fumaçar
E um cheiro de enxofre se espalhou
E, por pouco, ele não me sufocou
É tão forte que nem o diabo aguenta
Joguei, nele, um bocado de água benta
E o “coisado”, de novo, desmaiou
Dessa vez despertou rapidamente
E urrou, outra vez, endiabrado
Mas parou e ficou apavorado
Quando viu que eu estava sorridente
Com água benta, na mão, em sua frente
E, então, se humilhou, pedindo arrego
Ficou manso, que nem fosse um borrego
Suplicando pra eu não lhe benzer
Se o soltasse, ele iria me esquecer
Nunca mais tiraria o meu sossego
– Por seu Deus, não me molhe novamente
Essa água em meu corpo é uma tortura
Ela leva o meu sangue à fervura
Minha pele derrete, de tão quente
Eu já sei que você é um homem crente
E não posso causar-lhe nenhum mal
Não consigo vencer seu arsenal
E suplico que deixe eu ir embora
Se você me soltar eu caio fora
O jumento só espera o meu sinal
Como eu sei que o demônio tem poder
Mesmo sendo o meu Deus mais poderoso
Precisava livrar-me do tinhoso
Antes que começasse a escurecer
Qualquer cosa podia acontecer
Se eu não estivesse de vigia
Eu, então, disse que o soltaria
Se a Deus se prostrasse em juramento
“Que iria montar no seu jumento
E pra cá nunca mais retornaria”
O capeta, sem ter outra opção
Prometeu e jurou ao Pai Eterno
Que iria voltar para o inferno
E não mais se afastar do seu portão
Eu, ainda, impus outra condição
Pra poder lhe tirar do cativeiro
“Pra que todo corrupto brasileiro
Ao morrer fosse lá pro seu covil
Pois é falha a justiça do Brasil
Pra que tá no poder ou tem dinheiro”
Quando viu que não tinha um outro jeito
O demônio aceitou de imediato
E com Deus testemunha do contrato
Ele honrou o acordo que foi feito
Mas eu só lhe tirei a cruz do peito
Quando estava montado no jumento
Eu então lhe lembrei do juramento
Exibindo a garrafa de água benta
Com o jegue ele fez uma volta lenta
E sumiram, os dois, num pé-de-vento
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