DURO COURO.
Sou feito do duro couro
Arranhado de espinho
Eu sou a força do touro
Puxando tora de pinho
Sou tronco da barriguda
Sou o ramo de arruda
As sete vidas do gato
Sou folha seca da uva
Cortada pela saúva
No aceiro do regato.
Eu sou feito do barro
Retirado do barreiro
Eu sou a arte do jarro
Criada pelo oleiro
Eu sou filho da caeiras
Crepitando nas barreiras
Do agreste nordestino
Sou o barro amassado
Sou boneco modelado
Pelo mestre Vitalino.
Sou feito da cumeeira
Do alto do casarão
Suporto pó e poeira
Vou de inverno a verão
Eu sou madeira antiga
Que o cupim não mastiga
E nem o tempo corroe
Sou feito de pau pereira
Não tombo por brincadeira
Nem machado me destrói.
Eu sou feito de cachaça
Fabricada na usina
Sou a moenda que passa
A cana doce e fina
Sou quente e embriago
Vou de trago em trago
Levando a euforia
Sou álcool em profusão
Pra quem quer ter ilusão
Sou cachaça todo dia.
Sou feito do puro aço
Da folha de um facão
Sou a cara do cangaço
Cheio de pólvora na mão
Sou os anéis ornados
Nos dedos ensanguentados
Pelo chumbo da vingança
Sou o punhal em combate
Sou tiro de bacamarte
Defendendo a esperança.
Eu sou feito do veneno
Da presa da caninana
Pico, mato e condeno
E aleijo quem engana
Sou da noite a má sorte
Eu sou o rastro da morte
Que espreita e cubiça
Eu sou o bote certeiro
Na veia do traiçoeiro
Sou a cobra da justiça.
Sou feito de supertição
De cruz e de amuleto
Creio em assombração
Patuás e gato preto
De cobra eu sou curado
O meu corpo é fechado
Sou reza eu sou quebranto
Sou a fé nos vegetais
Que antigos ancestrais
Combatiam os encantos.
Sou feito de poesia
De tintas e de papeis
Eu sou a rima que cria
Motes, versos e cordeis
Sou a rapidez na mente
Do cantador de repente
Sou o dom do improviso
Sou a chama no pavio
Queimando em desafio
Tudo quanto for preciso.
Eu sou feito da enchada
Que abre sulco no chão
Cortando erva malvada
Que mata a plantação
Sou de ferro e madeira
Trabalho a vida inteira
Com minha face na terra
Vou pra traz e vou pra frente
Empurrando a semente
Que o roseiro enterra.
Sou feito de romarias
Feita lá no Juazeiro
Eu sou as escadarias
Por onde sobem os romeiros
Eu sou o penintente
Que castiga inocente
Seu corpo em penitência
Sou beata que confessa
Sou pagador de promessa
Com a cruz da inocência.
Sou feito do umbuzeiro
Que tem batata no chão
De janeiro a janeiro
Sou o verde do sertão
Sou a coluna selvagem
Na poeirenta paisagem
De grossos galhos manchados
Dando sombra colossal
Pra rouxinol e pardal
E viajantes cansados.
Eu sou feito do pilão
Velho tronco escavado
Já servi a escravidão
Hoje vivo encostado
O meu bater foi cantigas
De velhas lendas antigas
Vividas por muitos bravos
Minhas pancadas ouvidas
Pareciam com batidas
Dos corações dos escravos.
Sou feito de pau a pique
Moradas dos camponeses
Não ostento não sou chique
Não sirvo para os burgueses
Venho do barro molhado
E de um corpo suado
Que luta com a argila
Trazendo na mão melada
A construção desejada
Da moradia tranquila.
Sou feito do seu José
Junto com dona Maria
Quebrei coco catolé
Do jeito que mãe queria
Com meu pai aprendi tudo
Sei sorrir sei ser sisudo
Sei comer e fazer jejum
Somos cipós entrançados
Uns aos outros amarrados
Somos três e somos um.
Eu sou feito da farinha
Da raiz da mandioca
E raiz que bem cozinha
Produz a boa paçoca
Não sou a planta cativa
Eu serei sempre maniva
No roçado do sedento
Sou raiz que se consome
Farinha que mata a fome
Sou raiz de alimento.
Sou feito de uma rede
Traçada de algodão
Tenho punhos na parede
Nodoadas de carvão
Sou lenta e preguiçosa
Por vezes sou ardiloza
Como trama dos vampiros
Sou um ninho de lanpejos
Onde casais sertanejos
Trocam beijos e suspiros.
Eu sou feito da fogueira
Dentro do bosque escuro
Queimo a minha madeira
Clareando o futuro
Minha brasa reluzente
Ilumina o presente
Estou sempre aquecida
Já as cinzas do queimado
Lembram que no passado
Já foram fogo na vida.
Eu sou feito da roseira
Que Rosa um dia plantou
Fui a flor alvissareira
Que no verdume exalou
Copiosas frangâncias
Sentidas pelas estâncias
De um arraial colorido
Que nun voo palnejado
Tive um beijo roubado
Dum beija flor atrevido.
Eu sou feito da chuva
Que no parreiral derrama
Gelados pingos na uva
Dando mas viço a rama
Sou também veio feliz
Molho o chão vou na raiz
Como um fraco ribeirinho
Nutrindo com mas vigor
Ao transformar o sabor
Da uva para o vinho.
É assim que eu sou feito
De cada coisa um pouco
Mas nem tudo eu aceito
Não penso como um louco
Sou uma prosa atoa
Lida por qualquer pessoa
Que queira se sentir bem
Ou que sinta aguerrida
O desejo nessa vida
De ser feito assim também.