Coração de barro.

Minha singela homenagem às paneleiras de Vitória, fabricantes das inigualáveis panelas de barro, produto artesanal típico da cozinha capixaba.

Fui comprar uma panela

Num galpão improvisado

La eu vi uma donzela

Com o vestido amarrado

Tinha uma voz singela

Que eu fiquei admirado.

Perguntei qual era o preço

Da panela que eu olhava

Perguntei seu endereço

Ela não me escutava

Disse que eu não mereço

Saber onde ela morava.

Disse que sou forasteiro

Nada sei sobre o viver

De quem vive no barreiro

Pra poder sobreviver

Mesmo com pouco dinheiro

Ela tem bom proceder.

Eu fiquei envergonhado

Ao ouvir a sua voz

Não falei do meu passado

Nem da minha vida atroz

Ela disse que o Estado

A deixou órfã e a sós.

Perguntei como vivia

Respondeu ser artesã

Perguntei o que fazia

Ela disse que o afã

É o mesmo todo dia

Para ter a vida sã.

Perguntei então por quê

Ele vive tão sozinha

Ele respondeu que vê

Todo dia uma vizinha

Que a convidou pra ser

Paneleira na pracinha.

Começou então fazer

Panela e vaso de barro

E depois foi aprender

A fazer floreira e jarro

Aprendeu a escrever

Para ler placa de carro.

Insisti em perguntar

Se não falava bobeira

Ele disse a me olhar

Isso não é brincadeira

Vim aqui pra trabalhar

Eu sou uma paneleira.

Eu fiquei admirado

Com tão nobre profissão

Falei se tem namorado

Ela respondeu que não

Falei se vende fiado

Ela respondeu que não.

Perguntei então se tinha

Um minuto pra me ouvir

Ela respondeu que vinha

Trabalhar pra distrair

Pois o tempo se avizinha

E teria de partir.

Perguntei por que mudar

Ela disse que o prefeito

Disse pra desocupar

O galpão de qualquer jeito

Tudo ali vai desabar

Pra fazer um mais perfeito.

Disse que não há lugar

Que tem a terra adequada

Vai parar de trabalhar

Vai ficar desempregada

Não terá onde morar

Vai ser na rua atirada.

Eu lhe disse que um dia

Conheci certo doutor

Que nada lhe cobraria

Pra fazer mais um favor

Sua briga compraria

Pra manter o seu labor.

Fui ao meu advogado

Falei tudo de memória

Ele se pôs ao meu lado

Ao ouvir a minha história

Mesmo não remunerado

Disse ser a sua glória.

Disse que as paneleiras

Ficariam no lugar

Tirariam das barreiras

O barro pra trabalhar

E seriam as derradeiras

Ao lugar abandonar.

Fomos juntos ao galpão

La eu vi a minha dama

Com umas folhas na mão

Tentando acender a chama

Pra fazer a queimação

Das peças que estão na grama.

Eu falei que a batalha

Era para mim também

Mesmo com a memória falha

Eu sabia muito bem

Que o lugar que se trabalha

É sagrado para alguém.

Eu ganhei um forte abraço

Da moça que era infeliz

Eu lhe estendi o braço

Dizendo que nada fiz

Ela está no seu espaço

E trabalhando feliz.

Renato Lima
Enviado por Renato Lima em 18/10/2017
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