CORDEL DE ENCANTAMENTO
A vosmecês conto essa história,
de palavra em palavra,
de como foi que a poesia
fez de mim campo de lavra...
Em campo seco e borda verde,
menino de pés descalços,
foi como se uma sede
viesse lá do alto...
Encarnação, epifania,
no mundo estava já,
mas de novo eu nascia
pra refazer o que havia cá...
Rabisco de nuvem no céu,
raios de trovação,
Deus dá, Deus tira o véu
da rima do coração...
Benção, quem sabe, dom,
tripa revirada, enjoar,
carpir dicionários, som
de enxada na pele do ar...
Graveto, primeira caneta,
terra, primeiro branco,
o gosto na boca, aceita
o verso torto, manco...
Água de beber macio,
o risco de endoidar cresce,
palavra é inverno, frio,
café quente que desce...
Mãe de ver e sorrir,
pai de cobrar conta de luz,
escrever é desmontar e ir
pé ante pé à sua própria cruz...
Mas que mundo ouve poesia
que nascente brota
se o silêncio é que faz o dia
virar terra seca e ignota?
Ao pé da serra ora
de encantamento embora
o anjo no céu que chora
lágrimas de brilhante devora...
O verso no boi que vai,
hai-kai na vaca que vem,
cordel de encantamento cai
do beiço do poeta que tem
os sentidos aguçados, adaga,
rasga o coração do amor,
estrela ruidosa vaga
feito, no céu, flor...
O mundo ignora
se não cantar as miudezas,
na janela alguém demora
a esperar tuas estranhezas...
Até que, feitiço,
range a porta do castelo,
se rompe o enguiço,
sentimento no prelo...
O mundo, mundo, vasto mundo,
espera as pétalas de tua poesia
que vem do raso e do profundo
coroar as belezas que o caos cria...
Descanso? não, lida sem fim,
palavras são fiapos de luz,
tu és a lâmpada de vidro cetim
que os olhos de quem lê reluz...
Fecho este em golfadas;
viver é o instante de criação
que recebe cada pessoa amada,
cada silente e doído coração...