CORDEL DA PEDIÇÃO

Oi, dá licença de entrar, seu dotô,

devagar, de pé em pé,

pra num haver estranheza nem ué,

como dizia meu avô...

Vim de longe léguas tantas,

de emborná, água e farinha,

à mode de lhe perguntar

se pode ouvir a prosa minha...

Pois bem, lhe conto a epopeia,

o assunto sem demora,

moro eu e minha véia

num casebre de escora...

Filho a gente num tem não,

nem de pega filho de outro,

se dois come três come, então,

boca vazia não acha ouro...

Mas foi de terra que vim falá,

d'um pedaço longe daqui,

onde o rio faz entortar,

cheio cheinho de lambari...

Dá cinquenta passos de cumprideza,

trinta, contei, dá de largura,

mas um grileiro, na safadeza,

tomou de espingarda de cor escura...

Eu e a muié pinchados a gente foi,

só de corpo a roupa vestida,

mataram inté nosso boi,

que a gente chamava de Margarida...

Rondemo o campo e nada de encosto,

ninguém chamou pa trabaiá,

se a vida é boa, como diz um outro,

pra nós não foi, foi de amargá...

Pela cidade pedimos comida,

um dinheirinho pro fumo de corda,

mas só encontremo gente ardida,

ruindade é rio, às veiz transborda...

Um de qüem-qüém na falação

diz que douto sabe os caminho

de pegar terra na encostação

e botar lá dentro o seu vizinho...

Por isso mermo cá me encontro

a lhe pedir ajuda séria,

carpi, planta, tô mais que pronto,

cansei de viver nessa miséria...

Mas se num dé serve um palmo

bem afundado pra mim morar,

vou de bom gosto e ói que bem calmo,

o padre disse que no céu tem lugar...

Pelo que vejo nos olhos do senhor

posso parar de falar e pedir,

já deve ter ouvido, num é dotô?,

gente a clamar e a insistir...

Sabe o senhor que a vida lá fora

num dá perdão a quem nada tem,

a igreja do relógio é que bate as horas

pra avisar que tá vindo a procissão do desdém...

Saio daqui como vim entrar,

de mãos vazias e coração aflito,

o senhor não sabe como é sonhar

e acordar ouvindo o próprio grito...

Vou avisar a muié minha

que o fim tá perto demais de nós,

a Deus, os dois, junto, caminha,

vamo rezano com a nossa voz...

Num deu certo desce do céu

pra viver a vida aqui no chão,

anjo da guarda, levanta o véu,

desata o nó do nosso coração...

Se bem me lembro, nunca esqueci,

um dia meu pai me disse um ditado,

melhor viver com o que tem de possuir

do que querer o que não lhe é deixado...

Agora fecho estas medidas

sentindo cá no coração

que mais vale o amor nessa vida

do que cantar o cordel da pedição...