A COBRA DO VALE DO RIO VERMELHO
I
No Vale do rio Vermelho,
Um lugar muito pacato,
Gambá cuida de galinhas
E o cão brinca com o gato,
Um dia isso mudou,
Narrar o caso eu vou,
Não há dúvida que é fato.
II
Meu compadre Zé do Mato
Contou-me o que aconteceu,
Sem mentir nem omitir
Tudo quanto lá se deu,
Sobre uma cobra gigante,
Que surgiu numa vazante
Logo que escureceu.
III
O grande rio ferveu
E o povo se alvoroçou
Porque o piado da cobra
Que nem trovão ribombou,
Na ponte viu-se um clarão,
Depois veio um apagão
E um temporal se formou.
IV
Uma chuva desabou,
Só que era escaldante,
O chão cobriu-se de pedras
De ouro, prata e diamante,
Ninguém em nada buliu
Porque a cobra engoliu
Tudo aquilo num instante.
V
A cobra seguiu adiante,
Mas do rio não saía,
A enxurrada é que levava
Tudo o que ela comia;
Chegou até a nascente,
Desceu o rio novamente
Pra voltar no outro dia.
VI
Na hora da Ave Maria,
Quando o povo na capela,
Saudando a Mãe de Deus,
Acendia uma vela,
Um raio caiu do céu
E o vento levou o véu
Da Santa Virgem tão bela.
VII
Outra noite como aquela
Só mesmo a da Paixão,
Quando Cristo recebeu
O beijo da traição;
O Diabo é que estava solto
E não houve nenhum douto
Pra dar outra explicação.
VIII
Apareceu o Dragão,
Lançando fogo morteiro,
O povo saiu da igreja
E se ajuntou no terreiro,
A aflição era tanta,
Clamaram à Virgem Santa,
Formando grande berreiro.
XIX
Meu compadre é mineiro,
Então nele eu boto fé,
Pois me contou este caso
No dia de São Tomé,
A cobra era tão brava,
Diz ele que ela ficava
Suspensa no ar, em pé.
X
A cobra nadava até
Chegar na beira do rio,
Dava ali uma rabanada
E soltava um longo pio;
Quando o caso ele conta,
Sua cabeça fica tonta
E ele sente um calafrio.
XI
A cobra que nem navio
Deslizava rio abaixo,
Levava tudo no peito,
Não havia cabra macho
Para botar freio nela,
Parecia que só ela
Era dona do riacho.
XII
Fizeram até despacho
Pra mandar a cobra embora,
Mas ela sempre voltava
Noutro dia à mesma hora,
Já não era mais surpresa
O rio virava represa,
Botando água pra fora.
XIII
Preces a Nossa Senhora
Aquela gente fazia
Para expulsar essa cobra,
Que sempre aparecia
No finalzinho da tarde,
Fazendo um tal alarde
Até o raiar do dia.
XIV
Todo o povoado sofria
Com essa calamidade,
Ninguém podia dormir
Nem ficar mais à vontade,
Pois no rio aquela cobra
Fazia grande manobra
Com muita sagacidade.
XV
Alguns foram à cidade
Para pedir ao prefeito
Que chegasse até o vale
E na cobra desse um jeito,
Mas ele estava ocupado,
Recebendo um deputado,
Por todo o povo eleito.
XVI
A cobra aprontou um feito
Que até então nunca fez,
Resolveu sair do rio
E atacar de uma vez
A assustada povoação,
Devorou logo um leitão,
Frangos comeu dois ou três.
XVII
Ficou a cobra freguês
Daquela vasta região,
Toda noite ela saía
A fazer sua excursão,
Com uma fome voraz,
Não deixava mais em paz
A pobre população.
XIX
Não tendo outra solução
Para o caso resolver,
Chamaram o Pai de Santo,
Que chegou no escurecer,
Com o rio já subindo,
Pois a cobra estava vindo,
Fazendo a terra tremer.
XX
Muitos foram se esconder
Numa gruta na montanha,
Mulheres e criançada
Em gritaria tamanha,
Mas outros botaram fé
E não arredaram pé
Para assistir à façanha.
XXI
Apareceu uma aranha
Do tamanho de um boi,
E o Pai de Santo rezou:
- Que são Jorge lhe abençoe
Por atender meu chamado,
Quem fala que eu sou viado
É porque um dia já foi.
XXII
Sei que a verdade dói,
Hoje a cobra vai fumar,
Quando esta grande aranha
Com ela se atracar,
Vai pegar fogo no mato,
Mas antes vou dar um trato
Para a cobra se amansar.
XXIII
Então começou rezar
O terço do preto velho,
Aos presentes leu um texto
Do sagrado evangelho,
Um sermão ao povo fez,
Afirmando: - desta vez
A cobra dança no relho.
XXIV
O Vale do Rio Vermelho
Ganhará libertação
Desse mal que tanto aflige
A nossa população,
Vou seguir o catecismo
E fazer um exorcismo,
Pois o Diabo está em ação.
XXV
Enquanto isso o cobrão
La no rio rebojava,
Suspensa no ar, em pé,
A sua língua mostrava,
Lá ficou enviesada,
A água foi represada
E o rio tudo alagava.
XXVI
Pai de Santo praguejava
Contra a maldita serpente,
Dizia ser um demônio
Que estava ali presente;
O caso era incomum,
Mas o poder de Ogum
Venceria, finalmente.
XXVII
Toda aquela pobre gente,
Sofrida e muito assustada,
Foi chegando para perto,
Responsando a rezaiada;
O Pai de Santo dançava,
Meio até que requebrava,
Mas ninguém dava risada.
XXVIII
A aranha ali parada
Parecia adormecida,
Mas no fim da ladainha
Ficou muito enfurecida,
Partiu pra cima da cobra,
Esta fez uma manobra
E deu um bote em seguida.
XXIX
Não se dando por vencida,
A aranha teceu um fio,
Com ele laçou a cobra
E a puxou com muito brio,
A cobra até ficou mansa
E veio arrastando a pança
Pela beirada do rio.
XXX
Demonstrando ser bravio,
Aquele monstro urrou,
Mas a aranha abriu a boca
E a cobra abocanhou,
O povo gritou amém
E naquele vai e vem
A aranha se arreganhou.
XXXI
Depois que a luta acabou
Ambas ficaram amigas,
A aranha e a cobra
Não quiseram mais intrigas,
Saíram de braços dados,
Foram passear pelos prados
No caminho das formigas.
XXXII
Voltaram fazendo figas
{Isso pela madrugada}
E a víbora já tinha
A aranha como aliada,
Contra cobra e aranha agora,
Quase no romper da aurora,
Nova luta foi travada.
XXXIII
Sem ter lança nem espada,
O povo estava aflito,
Fizeram muitas promessas
Até pra São Benedito,
Só que nada adiantava
E enquanto o pessoal rezava
Pai de Santo deu um grito:
XXXIV
- Eu invoco o “Esprito”
Mais forte do Candomblé,
Como já estou na cachaça,
Nem me lembro mais quem é;
Só peço pra vir agora
São José e Nossa Senhora,
Ou então um jacaré.
XXXV
Aqui meu compadre até
Se benze e muito gagueja,
Não tira os olhos do chão,
Jurando em nome da Igreja;
Diz que é o poder da fé
E afirma que um jacaré
Veio sim para a peleja.
XXXVI
Só o Judas é que beija
No momento da traição,
Crocodilo não faz isso
Na presença de Pai João,
Este joga água benta
E o jacaré se apresenta,
Pulando do ribeirão.
XXXVII
Voando que nem gavião
O bicho cruzou os ares,
Disseram que ele vinha
Dos mais longínquos mares,
Chegou pra comer a cobra
Mais a aranha de sobra
E acabar com os pesares.
XXXVIII
Dos mais distantes lugares
Veio gente para ver
A luta que começava
Logo no alvorecer;
A cobra piava rouca,
Jacaré abriu a boca,
Aranha pôs-se a tremer.
XXXIX
Antes do amanhecer,
O rio virou um lago,
A aranha entrou no buraco
E a cobra fez um afago
Nas costas do jacaré,
Este deu-lhe um pontapé,
Nela fez algum estrago.
XL
Meu compadre meio gago
Conta-me sem dar risada
Que a cobra amoleceu,
Recuando assustada,
Largou de fazer badernas
E com o rabo entre as pernas
Fugiu numa disparada.
XLI
A perder não tenho nada,
Seguro morreu de velho,
Então para quem me leu
Este aviso é um conselho:
Sempre é bom se precaver,
Nunca queira conhecer
O Vale do Rio Vermelho.