JOÃO GRANDE - UM CANGACEIRO NA CAPITAL

Estive no Piancó

Pra rever algum parente

Minha família Lacerda

Povo muito inteligente

Pensei ter deficiência

Porém dessa descendência

Eu nunca vi tanta gente.

De Zuza um descendente

Na forma mais natural

Falou-me de um seu parente

Tio em terceiro grau

João Lacerda, um cangaceiro,

Que foi pro Rio de Janeiro

Conhecer a capital.

Período Colonial

Esse parente vivia

Deixando a caatinga

Começou a travessia

Andou dois meses inteiro

Até encontrar Conselheiro

No Estado da Bahia.

Não era o que ele queria

Porém ao grupo se uniu

Depois de recuperado

Uma certa manhã sumiu

Dando uma de fugitivo

Pra alcançar o objetivo

Que era a cidade do Rio.

Até que enfim conseguiu

Na Guanabara chegou

Pra sobreviver comeu

O pão que o diabo amassou

Mas conseguiu seu intento.

Após muito sofrimento

Para o Piancó voltou.

Para os amigos contou

Tudo que por lá viveu

Lugares por onde andou

Pessoas que conheceu

Com quem se relacionou

Até com o Imperador

João Lacerda conviveu.

João Grande era o nome seu

Nos tempos de cangaceiro

Também com esse apelido

Lá no Rio de Janeiro

Ele ficou conhecido,

Um sujeito divertido

Alegre e bem prazenteiro.

Com seu falar beradeiro

Sem uma palavra acertar

Alegrava a toda gente

Quando estava a conversar

Num linguajar irrisório

E é o seu palavrório

Que eu vou em versos narrar:

"Minha gente, eu vou falá

Como sofre um brocoió

Que vai pru Rio De Janeiro

Deixando seu cafundó

Lugá que eu disconjuro

Pru Santo Onofre eu te juro

Que a coisa é muito pió.

Amigo Zé Piancó,

Eu garanto a vosmicê,

Mané Joaquim, minha boca

Nem tudo pode dizer

Que tem naqueles abróio

E eu vi cum esses dois óio

Que a terra há de comê.

Na hora que fui descê

Do carro, já fui robado

No dinheiro que levava

Com tanto suó ganhado

Em Antonho Conseiêro

Cum a inxada o dia inteiro

Na prantação do roçado.

Os ladrão puresses lado

Vem das canáia ruim

Mas óia que lá na Côrte

A coisa num é assim,

Ladrão lá é respeitado,

E foi um civilizado

Que tomou tudo de mim.

Vocês vão se rir enfim

Mas o fato é verdadeiro

Cumade, nem que você

Assuntasse o ano inteiro

Na esperança de sabê,

Num haverá de dizê

Quem me roubou o dinheiro.

Roguei praga, fiz berreiro

Mas o cabra me impuiou

Cum tanta inducação

E até me abençuou

Mas hai de pagá bem caro,

Apois bem, foi um vigáro

Que meu dinheiro robou.

Num leve a séro, sinhô,

A tá civilização,

Um home que lá na igreja

Cunfessa, dá comunhão,

Faz casamento, batiza,

Róba, num leva uma pisa

Nem nunca vai pra prisão!

Mané Bijú, meu irmão,

Num é pru querê falá,

Mas no Rio tem avenida

De terra e de beira má

De noite num se vê treva,

Tem casa que a gente leva

Um dia inteiro a atrepá.

Triato Municipá,

Paláço, Praça da Sé

Mas porém tem muito cabra

De otromóve ou de pé

De gravata e colarinho

Que passa o dia inteirinho

Com uma chica de café.

Vocês num sabe o qui é

Um cabra sarambelão

Com uma camisa arrufada

Um chapéu sempre na mão?

Pindure pelo pescoço

Que num cai daqueles bolso

De nique nenhum tostão!

Faz uma cumprimentação

Quando vê uma muié

Um sarará que se dana

Querendo pegá no pé

Sai atrás, todo contente,

Como mosca quando sente

O cheiro fresco do mé.

Mas porém, sabe comé,

É que nem fogo de vela,

Mazombeira, isfabriçada,

Nem seu que gente é aquela.

Parece que nem existe

pois tem os óio tão triste

E a cara toda amarela.

A vida aqui é mais bela

Até na última viage

No balanço duma rede

Sintido a brisa servage

Como se fosse um caminho

Que vai andando sozinho

Tendo os mato como image.

Os dotô das vadiage

Na Côrte, pulos jorná

Fica inventando cunversa

Pru num ter o que falá

Dando ao povo informação

Que as terra cá do sertão

Num é mais que um hospitá.

Tanta coisa a inventá

Que inté faz raiva na gente

Diz que os minino é magrinho

Que o povo é tudo doente...

Que diabo é crislotomóge,

Diambeta, trumbeculoge?

Quanta palavra indecente!

Um dia eu fiquei doente

Quage morri de uma dô

O meu cumpadre Mironga

Mandou chamá um dotô

E dende a cabeça inté

O dedo mindim do pé

O sujeito me aparpou.

Só dispois ele falou

Que eu tava muito im pirigo

Que eu tinha uma hôpantite

Aqui, na boca do figo,

E que num tinha mais jeito

Pruque já tava dos peito

Inté no pé de imbigo.

Aí eu pensei comigo:

Num acredito em dotô.

Ele num disse mais nada

Dispois que me arreceitou,

Se assentou num cantinho

E num papel inteirinho

Com a pena iscarafunchô.

Quando ele me entregou

Daquela casa eu saí

Fui no Chico Pé de Chumbo

Uma mandureba bebí

Com azeite e áio dento

E dende aquele momento

Nenhuma dô mais sentí.

Um dia eu fui assistir

Uma apresentação

Pru via do Desidéro

Me dar uma informação

Que no triato os atô

Ia falá dos amô

Das terra do meu sertão.

Fui no triato, apois não,

Que sastifação senti

Vendo os atô falá bem

Das terra donde eu nascí

Até dizerem besteira,

Vejam voces a porqueira

Dessa xêta que eu uvi,

Um cara de bacuri

Foi dizê uma poesia

Chamando de soveni

A sodade que sentia

Com uma musga sertaneja

Diferente das peleja

Que aqui nós sempre uvia.

Foi me dando uma agonia

Aqui no meu buliçoso

Aí eu gritei: - Canaia,

Deixe de ser mentiroso

Que esse tar de soveni

Num é coisa do Brasí,

Deixe de ser presunçoso!

Num teve um corajoso

Que me enfrentasse ali,

Vendo a besteira que eu fiz

Mas desculpa eu não pedí

Com raiva e desiludido.

Pois foi tudo acontecido

Do jeito que eu conto aqui.

O cara de bacuri

Num sabe poesia não

E as poesia dos doutô

Tá cheia de palavrão.

Eles que não sabe nada

É uma coisa atrapaiada,

Uma grande atrapaiação

Os verso aqui do sertão

É que nem um beija-frô

Com as penuge ainda quente

Cantando pro seu amô

Que aqui se ama de fato.

Mas porém, vamo ao triato

Que o caso ainda não findô.

Quando o triato acabou

Um graças a Deus eu dei

De riba do cambarote

No chão entonce pulei

Fiz com a mão um desaforo

Butei meu chapéu de couro

E dali me arritirei.

No camim eu encontrei

Um broco de carnavá

As muié tinha na cabeça

Um chapéu, como um jacá

No corpo, de pena um móio

Que só se vendo cum os óio

É pussive acreditar.

Aquelas moda de lá

É uma farta de respeito

Tinha uma moça atrepada

Cum uns pano mostrando os peito

Achei isso um caso séro.

E me diche o Desidéro

Que era a filha do prefeito.

Eu não entendi dereito

Aquelas coisa que eu vi.

De lá de riba atrepada

Ela oiô pra eu ali

Sem fazer nenhum segredo

Pichou um beijo cum os dedo

E dispois danou-se a rir.

Cumpade, as coisa que eu vi

Nesse tar de carnavá

Mermo eu sendo seu cumpade

Me envergonho de contar

É mermo um dia de juizo,

E eu achei que era preciso

Dali me arritirá.

Dispois eu fui visitá

Uma tá de cademia

Cheia de iscrevedor,

De homi que faz poesia

E os poeta de lá

Chamam dotô imortá,

Veja só que arrilia!

Dizê que quem faz poesia

Num morre é uma asneira,

Se isso fosse verdade

Aqui na nossa ribeira

Tava era cheia de gente

De cantadô de repente

Imortá na capoeira.

Dispois eu fiz a besteira

De ir ver uns monumento

Uns povo chamado estauta

Que passa o dia no relento

Sem poder nem se mexê

Trepado num sei em que

Levando sol, chuva e vento.

Lá no largo dum convento

Tinha um sinhô muito séro

Chamado Zé Bonifáço

Homi de muito critéro

Foi tutor e professor

Do segundo imperador,

Assim disse o Desidéro.

Inda fui num cemitéro

E outras coisa mais vi

Mas de tanto batê perna

De repente adoeci

Dispois duma chumbregueira,

Acho até que fiz besteira,

Dessa vez quaje morri.

Quando doente eu caí

Mandaro vim um dotô

Que era muito famoso.

O sujeito me aparpou

E diche pra Desidéro

Que o caso era muito séro,

Mas pra eu nada falou.

Apenas me preguntou

Se eu era pai e famía

Que eu tinha de viajá

Dentro de dois ou tres dia

Que eu tinha uma fissura,

Um má que não tinha cura

Chamado «lesão cardía».

Oxente, no outro dia

Mal o dia amanheci

Abracei seu Desidéro

E lá do Rio parti

Pra matá minha saudade

E morrê mais a vontade

Cá nos mato onde eu nasci.

Agora eu estou aqui

Com voces tudo: a comade

Minha véia Bastiana

Minha afiada, o cumpade

E a famía. No sertão

Pra morrê do coração

Se morre mais a vontade.

Os dotô lá da cidade

Sabe onde tem os nariz

A tá de lesão cardía

Foi o dotô Raio X

Que viu no meu coração

Mas essa máquina, patrão,

Nem sempre sabe o que diz.

Tou contente, tou feliz

Na minha comunidade

Tou curado, foi engano

Do dotô lá da cidade

A doença que eu sofria,

A tá de lesão cardía

Tinha outro nome: Sodade!

Irecê - BA, 26/12/2016

SIGNIFICADO DE ALGUMAS PALAVRAS

E EXPRESSÕES DESTE TEXTO:

Piancó = grande vale no interior da Paraiba, com várias cidades, inclusive a cidade de Piancó e o rio de mesmo nome. Esse vale

é também reduto de uma das maiores famílias latinas, a Família

Lacerda, a qual eu também pertenço.

Zuza = José Cavalcante de Lacerda ou Coronel Zuza Lacerda,

que combateu como policial e protegeu como coiteiro a vários

bandos de cangaceiros. Coronel Zuza foi Deputado Provinciano

e por desavenças políticas chegou a desmembrar suas terras do

resto do Brasil, proclamando sua própria República, a República

da Estrela, que durou cerca de quinze dias.

Guanabara = antigo nome do Rio de Janeiro.

Falar beradeiro = linguajar do interior.

Brocoió = matuto

Abróio = abrolhos. No texto significa, localidade.

Impuiô = enganou, levou na conversa.

Otromóve = automóvel.

Sarambelão = pilintra, malandro.

Arrufada = engomada

Sarará = falador, galhofeiro.

Mazombeira, esfabriçada = maltrapilha, esfarrapada.

Crislostomoge = esquistossomose

Diambeta = diabete

Trumbeculoge = tuberculose

Hôpantite = hepatite

Escarafunchou = escreveu

Mandureba = cachaça

Aio = alho

Xêta = piada

Cambarote = arquibancada

Jacá = espécie de balaio

Pichou = acenou com um beijo

Estauta = estátua

Bacuri = porco novo, bacurim, leitão

Chumbregueira = porre, bebedeira

Fissura = lesão, ferida

Lesão cardía = lesão cardíaca.

Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 15/02/2017
Código do texto: T5913227
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