A CADELINHA BILOCA.

Passo agora a contar

O que veio conquistar

Me fazendo acreditar

Que é a fé que acalma

Foi ver um ser inocente

Ter sentimento de gente

Como se tivesse alma.

Foi no mês de janeiro

Um movimento ligeiro

Perto do galinheiro

Me chamou a atenção

Eu de instinto aguçado

Fui pra lá desconfiado

Mode ver a confusão.

Procurando com jeito

O barulho suspeito

Foi que vi direito

O que era de fato

Era uma cadelinha

Com sede e fome sozinha

Na caixa de um sapato.

Um ser fraco e miúdo

Precisando de tudo

Um sentimento agudo

Ardeu-me feito brasa

Peguei o bichinho carente

Desprotegido, inocente

E levei pra minha casa.

Desse dia em diante

De instante em instante

Um movimento constante

Saia fora da toca

Puxava, rasgava mordia

Brincava saltava e latia

Assim adotei biloca.

Ela foi crescendo

Com a gente vivendo

Assim foi aprendendo

Conhecer as pessoas

Com um instinto sem par

Aprendeu a separar

As coisas ruins das boas.

Biloca era uma cadela

Pequenina e bela

Tinha a pata amarela

E o pelo branquinho

Brincava cheia de manha

Com uma alegria tamanha

Da alma de um anjinho.

Sempre que eu saia

Biloca também ia

Como minha companhia

E sempre foi assim

Nunca ficava de lado

Eu já tava acostumado

Com ela perto de mim.

Brincava com os meninos

Latia para os caprinos

Mostrando os seus caninos

Fingindo ser um guará

Passava o dia inteiro

Por dentro do tabuleiro

Atras de pegar preá.

Em noite de cantoria

Eu e minha Maria

Depois da janta nos ia

Pra casa do velho noca

Que ia logo avisando

"Olha quem tá chegando

É Zé' Maria e biloca"

Chegava eu do roçado

O corpo meio curvado

Cansado muito cansado

Os braços só os flagelos

Biloca inteligente

Trazia preso no dente

O meu par de chinelos.

Logo de manhãzinha

No cantar da andorinha

Me servia na cozinha

Com café e tapioca

Depois eu ia pra roça

Deixando cá na palhoça

Minha Maria e biloca.

Biloca era querida

Por todos mais preferida

Desde que foi nascida

Na caixa de um sapato

Era de tal maneira

Que vivia de brincadeira

Com tudo que era gato.

Vendo o sol caindo

Atras da serra sumindo

Eu já estava saindo

Da minha luta do dia

De longe me avistava

Biloca me encontrava

Me abraçava e lambia.

Eu vi numa leitura

Que toda a criatura

Que tem a alma pura

Senti no peito um alento

Porém eu venho a socorro

Sendo cachorra ou cachorro

Possui também sentimento.

Um dia minha amada

Ficou adoentada

Numa cama deitada

Quase um mês passou

Biloca foi sua dama

Não saio do pé da cama

Ate que ela sarou.

Quando quebrei o pé

Na roça do seu dede

Passei um ano até

Penando esse castigo

Biloca dó de mim tinha

Levantava a patinha

Para parecer comigo.

Biloca era esperta

Vivia sempre alerta

Latia na hora certa

Se houvesse precisão

Era pequena e valente

Deixava a marca do dente

Na bunda de um ladrão.

Porém ficava manhosa

Feito uma planta viçosa

Mansa atá dengosa

Se fosse acariciada

Deitava feito criança

Que no berço balança

Pra dormir sossegada.

Quando chegava o dia

Pra minha rede ela ia

Arranhava e latia

Para eu ficar de pé

Como biloca não tinha

Me puxava pra cozinha

Pra eu tomar o café.

Eu disse a Maria:

Biloca é a legria

Que a nos dois fazia

Feito um circo mindinho

É carrapeta no dedo

Biloca era um brinquedo

Que tinha pelo e focinho.

Guando era o festejo

Lá no meu lugarejo

Sanfona e realejo

animava o salão

Era tiro e brincadeira

Ao redor da fogueira

Em noite de são João.

O santo São João

Com toda emoção

Aceitava a devoção

Com alegria e fé

E a gente sorria vendo

Biloca atras correndo

Da brasa do buscapé.

Biloca latia e pulava

Mas guando o andor passava

Biloca logo parava

Quieta em um canto

Quem via solene espera

Pensava até que ela era

Devota também do santo.

Porém o destino tirano

Debulhou um mal plano

Na roça do desengano

Onde a enxada batia

E o riso ficou sem trato

Todo coberto de mato

Por riba da terra fria.

Seu Juca o meu parente

Veio pessoalmente

Dizer que tinha em mente

Ir na mata Gurjaú

Pois lá havia uma toca

E ele queria biloca

Mode caçar o tatú.

Fiquei meio insatisfeito

Mas porém tinha respeito

E vi que não tinha jeito

Do pedido eu negar

Além do mais eu sabia

Que biloca possuía

Grande fama no lugar.

Por ser valente e pequena

Guando ela entrava em cena

Dava a gota serena

Na serra do pajeú

Do tronco tirava o taco

Entrava em qualquer buraco

Ate pegar o tatú.

A mata sendo fechada

Biloca era danada

Não tinha medo de nada

Que encontrasse na frente

As vezes ela sumia

E somente aparecia

Com o tatu pelo dente.

Dona de tanta proeza

Herdada da natureza

Emprestei com frieza

Mas logo fui avisando:

"A minha fala é amarga

Leve biloca e traga

Do jeito que tá levando"

Eu chamei biloca veio

Sem pressa nem aperreio

Sem demonstrar ter receio

Pra cumprir sua missão

Pois ela era afamada

A rainha da caçada

Conhecida no sertão.

Quando isso aconteceu

Uma tristeza me deu

Um suor frio escorreu

Como pingueiras frias

Mas seu Juca homem honrado

Disse:- fique sossegado

Que eu volto com três dias.

O animal dá carinho

Não deixa o dono sozinho

Não é um bicho mesquinho

Nem pede nada em troca

Eu já tava na verdade

Era sentindo saudade

Da cadelinha biloca.

Um dia eu acordei

Só o rosto lavei

Nem o café tomei

Vendo o tempo sisudo

Calado na vastidão

Parecia que o sertão

tinha amanhecido mudo.

Não cantava o sabiá

No galho do trapiá

Eu dizia:- o que há

Com essa natureza

Eu só ouvi no momento

A correnteza do vento

Dá um assobio de tristeza.

Fiquei no tempo parado

No meu batente sentado

Olhando o mourão trincado

E a poeira na cerca

A terra tava uma lixa

Nem se quer a lagartixa

Chiava na folha seca.

Corri abracei Maria

Contei a ela o que via

Naquela manhã vazia

Jogada ao abandono

A serra estremeceu

Parecia que ela e eu

Era um cão sem dono.

Dos sentimentos do mundo

O mais doído e profundo

Que fura a cada segundo

Esse mais me doeu

Conto só essa vez

O que o destino fez

Com biloca e eu.

Ouvi seu Juca gritando

O meu nome chamando

Sai me apressando

Sentindo o peso nos passos

Ao ver posto a cancela

O Juca de fronte amarela

Com biloca nos braços.

A fala dele tapou

Seu Juca nada falou

Chorando me entregou

Biloca nos braços meus

Peguei minha cadelinha

Voz eu já não tinha

Só exclamei por meu Deus.

Nosso senhor me ouviu

Naquele instante caio

Uma neblina de frio

Sobre minha tristeza

Um vento morno soprava

Parecia que enxugava

Os olhos da natureza.

A dor que esmaga o homem

São penhas, trituram consomem

Então as forças se somem

Deixando o peito vermelho

Ai não existe valente

Diante da dor potente

Que não dobre o joelho.

Ouvi o triste relato

Como escravo sem trato

Na senzala do mato

Com a vida roubada

A cada palavra sua

Cortava minh'alma nua

Como uma chibatada.

Biloca era uma cadela

Diferente e singela

Não havia como ela

Nesse mundo animal

Porém uma fúnebre caçada

Foi a sentença dada

Para o seu funeral.

Na mata do Gurjau

Num baixio de bambu

Biloca viu um tatu

E foi cumprir seu papel

Numa sombria loca

Deu um bote em biloca

Uma mortal cascavel.

A natureza é boa

Mas as vezes caçoa

Come vomita e enjoa

Guando fartura sobra

Dando ao um bicho pequeno

O mais terrível veneno

Que pode ter uma cobra.

Biloca não entendeu

O que aconteceu

Só sentiu que lhe mordeu

Um bicho feio e frio

Assim voltou brincando

Pela mata caçando

Atá que depois caio.

Ali findou as caçadas

As brincadeiras engraçadas

Os buscapés nas calçadas

Em noite de São João

Foi-se biloca guerreira

Apagou minha fogueira

Ficou sem sol o sertão.

Daquele dia em diante

Eu senti o purgante

Da saudade cortante

De um pesar velório

Minha alegria foi indo

Feito fumaça saindo

De dentro do purgatório.

Vendi o que possuía

Ali nada valia

Porque minha alegria

Foi morta pela serpente

Mas antes da despedida

Fui ao lugar de partida

Desta história inocente.

Fui até o galinheiro

Me despedir por inteiro

Do meu torrão corriqueiro

De terra preta e bruta

Onde cavei chorando

Uma covinha e botando

Biloca na sepultura.

Fiz uma cruz de garrancho

Que catei com um gancho

No terreiro do rancho

Como quem catava ouro

Enfiei na areia nova

E em riba da sua cova

Deixei meu chapéu de couro.

Eu sou um sujeito bruto

Peco a cada minuto

E com o peso do luto

Fiz essa prece tão rude

Me despedindo daquela

Que foi minha cadela

No tempo da juventude.

*"Se a vida é harmonia

De sonho e fantasia

Receba essa poesia

No céu dos animais

A tua saudade me toca

Adeus minha biloca

Adeus pra nunca mais.*"

Ebenézer Lopes
Enviado por Ebenézer Lopes em 19/12/2016
Reeditado em 23/12/2016
Código do texto: T5857625
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