O REPENTISTA.
Nos aqui do nordeste
Herdamos dos ancestrais
Uma arte que nos veste
De dons celestiais
Em tudo que for morada
Em todo pé de calçada
Terá sempre um vivente
Que vivi do seu roçado
Ou versa improvisado
Ou é cantador de repente.
Quando ainda menino
Brinquei com uma viola
Sem notar que o destino
Me puxava pela gola
Não sei o tempo que faz
Mas já era um rapaz
Meu pai obrigou a estudar
Mas foi em vão eu perdi
Porque o que aprendi
Foi tão somente rimar.
Um dia fui convidado
Para ir a um almoço
E ali fui confrontado
Por um violeiro moço
Que tinha anel no dedo
E cochichava em segredo
Com outro moço decente:
"Eu não entendo o teor
Para o povo dá valor
A cantador de repente"
"Tenho meu instrumento
Feito por encomenda
No lugar onde assento
Recebo pois muita renda
Toco em bom hambiente
Eu não toco repente
Suando pelas calçadas
A minha viola é feliz
Brilha em puro verniz
Com doze cordas importadas"
"Já quem canta repente
Não faz show em teatro
Toca pra qualquer gente
Em cima de qualquer lastro
Ainda quer ser poeta
Mas é só um pateta
Tocando numa viola
Não tem diploma notório
Não foi a conservatório
Não sabe o que é escola"
Ouvindo tanta injustiça
De um burro estudado
Sabendo o que cobiça
É só ser rico e notado
Me levantei da mesa
E para sua surpresa
Todos quiseram escutar
As minhas frases e lavras
As minhas poucas palavras
Então me pus a falar.
"Não sou um sujeito culto
Mas defendo minha arte
Pra responder o insulto
Eu peço aqui uma parte
No meio deste almoço
Quero dizer para moço
Que está na minha frente
Que o senhor vai ver
O direito e o dever
De um cantador de repente"
Ele pensou que eu iria
Fazer um pobre discurso
Mas eu usei da poesia
Pra me dá mais impulso
Com a viola no peito
Eu respondi ao sujeito
Sem possuir requinte
"Seu moço me escute lá
Que eu vou cantar de cá
Lhe dizendo o seguinte"
Toque a sua viola
Deixe a minha eu tocar
Se você tá na bitola
Porque a minha afinar?
A sua é feita a encomenda
A minha comprei numa venda
Sem sofrer carestia
As notas que a sua evoca
A minha também toca
Com a mesma alegria.
A sua só toca a riqueza
Que no salão se escuta
A minha toca a pobreza
Os desafios da luta
A sua é toda em verniz
A minha é pintada a giz
Enfeitada de fita
A sua é reluzente
Mas tocando repente
A minha é mais bonita.
Você só toca a beleza
Das notas que tá no papel
Já eu não tenho a nobreza
Só canto o meu cordel
A minha viola é singela
Aonde eu for levo ela
Porque o povo lhe estima
Já a sua vive guardada
Só toca guando é chamada
E assim mesmo não rima.
A sua só toca ensaiada
As músicas que for preciso
A minha vive afinada
E pronta pra o improviso
Basta só dá o mote
Que ela lhe dá o bote
Com ritmo,métrica e rima
E ainda toca mourão
Que essa da tua mão
Nem se quer se aproxima.
Quando vou em um lugar
Para tocar minha viola
Sempre tendo a voltar
Porque ninguém me amola
Eu não sou um michê
E nem recebo cachê
Para tocar de novo
Então somente percebo
Que o que eu recebo
É o aplauso do povo.
Tua viola é uma estrela
Só toca para as elites
E para eu descreve-la
Vou arriscar uns palpites
Ouvindo um som esquisito
Com um estilo erudito
No palco feito agaiola
Quem sabe não se engana
Sendo música americana
É tu tocando viola.
Seu tocador me entenda
Você é um bom artista
Errou fazendo contenda
Passando a ser egoísta
O seu tocar é notório
Vindo do conservatório
Sem sair fora da linha
Mas a verdade é crua
Eu só falei da tua
Porque tu falou da minha.
Se não tivesse falado
Tu não iria escutar
Que pra tocar bem tocado
Não é preciso estudar
Basta gostar das modas
E tocar doze cordas
Que na viola estica
Para ser bem tocada
E ficar bem afinada
Como a minha fica.
Sua viola enobrece
Cantores da fidalguia
A minha é pobre e carece
Das rimas da poesia
Meu canto lembra os mestres
Dos sertões e agrestes
Lotados de violeiros
A sua atende os nobres
Que lhe dão os cobres
Com cantos dos estrangeiros.
Seu moço eu sou do mato
Vivi na vida bruta
Não tenho estudo de fato
O meu saber foi na luta
Não sou poeta de fama
Nem possuo diploma
Com possui o senhor
Porem a onde eu cante
Você é o ignorante
E eu sou o doutor.
Duvido que se ouvissem
Tocar um "mourão voltado"
Talvez todos caíssem
De joelho dobrado
O teatro seria da gente
Do cantador de repente
Que versa tudo da vida
E o mundo ira falar
Do poeta popular
Com a viola querida.
O senhor traz no anel
Bela pedra vermelha
Na língua amargo fel
Do ferrão da abelha
Contudo eu lhe repeito
Porque trago no peito
Um favo de doçura
Então tome cuidado
O ódio é um pecado
Que leva pra sepultura.
Alem do mais meu amigo
Eu não paguei pra tocar
Por isso é que não ligo
Quando escuto falar
Que não sou um poeta
Me tiram ate por pateta
Mas são os espinhos teus
Que te lembram com furor
Que tu pagou professor
E meu professor foi Deus.
Não que lhe falte coragem
O que lhe falta é o dom
Então não conte ventagem
Nem se ache o bom
Fique com sua viola
Com seu fraque e cartola
E seu cantar diferente
Que é pra você aprender
Nunca mais se meter
Com cantador de repente.