VICENTE E O GRINGO.
Vicente já foi de circo
Antes de ser padeiro
Ajudante de pedreiro
Soldador de pinico
De tudo ele fez bico
Pra não pedir a ninguém
Foi vendedor de xerém
Num tabuleiro pequeno
Vicente vendeu veneno
E ratoeira também.
Foi lavador de cavalo
Entregador de jornal
Vendeu bola de natal
Juiz de briga de galo
Ainda fazia ralo
Para vender pamonha
Travesseiro e fronha
Entregou a varejo
Assentava azulejo
Nunca passou vergonha.
Foi amolador de faca
De tesoura e alicate
Pipoqueiro engraxate
Já vendeu doce de jaca
Foi empurrador de maca
Foi coveiro e sacristão
Cobrador de lotação
Despachou martelo e prego
Foi também guia de cego
Nas quebradas do sertão.
Vicente emendou prato
Concertou trinco e gaiola
Já ariou caçarola
Pra ganhar o seu trocado
Já vendeu milho assado
Canjica e tapioca
Bolo de goma paçoca
Concertou ate biqueira
Foi lambe-lambe na feira
E tocador de taboca.
Levava a vida na raça
Disposto e sorridente
Assim era Vicente
Sem engano ou trapaça
Se no mato ou na praça
Tivesse o que fazer
Ele ia resolver
Com seu jeito vicenteiro
Por prazer ou por dinheiro
Só pra ter o que comer.
Essa vida é engraçada
Para quem tem bom humor
Pois o riso é um primor
Começo da gargalhada
Tristeza vira piada
O golpe vira um abraço
O serio vira um palhaço
Basta ver o lado bom
Que a nota muda o tom
E segue outro compasso.
Pois não é que Vicente
Lá no jogo de bingo
Conheceu um tal gringo
Um caboclo diferente
Vivo feito a serpente
Porem bem educado
Falava meio enrolado
O "a" trocava por "o"
Melhor dizia "meió"
Vicente era Viçado.
Mais Vicente nem ligava
Se ele errava seu nome
Se fama virasse "fome"
Ao invés de frevo "fava"
Pouco se importava
Com o palavreado
Nunca havia escutado
Mais já que escutava
Ele ouvia e mangava
Daquele cabra engraçado.
O moço do estrangeiro
Fez de Vicente um amigo:
"Jogar bingou contigo
Faz eu ganha dinheiro
Viçado meu companheiro
Tu amiga dá sorte
Então eu enche teu pote
Com um simples missão
Tu vai dinheiro no mão
Ainda no moeda forte".
Vicente não entendeu nada
O que ele tava falando
Continuou jogando
Com a pedra marcada
Cartela quase fechada
Tava bom o domingo
Ele ao lado do gringo
Ouviu gritar "vinte e dois"
"Aqui, aqui e apois"
Vicente marcou bingo.
Depois que findou o jogo
Saíram o gringo e vicente
Foram tomar aguardente
No boteco "pinga fogo"
O gringo de demagogo
Esperto e empolgado
Contou em um reservado
Sobre um serviço estranho
Que por certo dava um banho
Nos que já tinha arranjado.
Falou sobre as vantagens
Que Vicente ia ter
Que ia deixar de ser
Um qualquer sem paragens
Falou também das viagens
Que iria fazer de avião
Que iria ter na mão
Anel e muito dinheiro
Mais antes era primeiro
Aceitar uma tal missão.
Vicente nunca escutou
Tanta vantagem assim
Comeu do bom e do ruim
Em tudo ele labutou
Nunca feriu nem matou
Nunca foi de ter manha
Só a fé lhe acompanha
Na sua índole correta
Que dava sinal de alerta
Para a missão estranha.
Disse o gringo a Vicente:
"É simples eu te explica
Viçado vai ficar rica
Gringo fica contente
É só daqui pra frente
Seguir meu instrução
Com uma aperto do mão
Se confirma o negocio
Viçado fica meu sócio
Sem precisa um tostão"
Mais nem que precisasse
Vicente não iria ter
Apesar de merecer
O dinheiro que ganhasse
O mal que planta nasce
Nascendo é bom cortar
Porque se o mal brotar
Não dá fruto que preste
Vicente fez logo o teste
E torceu em perguntar:
"Que missão danada é essa
Que eu não tô entendendo
Meu ouvido tá doendo
Com essa tua conversa
De me fazer promessa
Com dinheiro, avião
De anel e de tostão
De não sei mas o que lá
Seu gringo o que é que há
Desembuche essa questão"
O gringo deu uma risada
Pra disfarçar o engano
E comentou do plano
Da estranha empreitada
Que não teria errada
O serviço maneiro
Levar para o estrangeiro
Uma boa remessa
Que o gringo tinha pressa
Em enviar bem ligeiro.
Vicente ficasse em paz
Era só uma besteirinha
Missão não, missãozinha
Que qualquer um faz
Mas Vicente era o rapaz
Que dava sorte no bingo
Ia deixar de ser pingo
Pra virar enxurrada
E com conversa fiada
A vicente disse o gringo:
Vicente iria aprender
A ficar sem se bulir
Para poder engolir
Sem engasgar nem doer
Que não ia aparecer
Nem causar desconfiança
Guando tivesse na pança
Vicente ia de avião
Completar a tal missão
Lá pra o lado da França.
Mas tinha que ter cuidado
Pra não contar a ninguém
Que o segredo também
Não podia ser vazado
Para não ser tomado
De Vicente o presente
É que tinha muita gente
Com maldade e inveja
E o que não mata aleija
Disse o gringo a vicente.
Vicente desconfiado
Disse:"agora piorou"
Ele bebeu endoidou
Esse fresco tá lascado
Engolir engasgado?
Rapaz tome respeito
Eu sou um cabra direito
Não meta a sua colher
O meu negocio é mulher
Outra coisa não aceito.
Aqui nessa região
Sou conhecido e aceito
Do mendigo ao prefeito
Me tem consideração
Sou pobre de pé no chão
Porem firme na cadência
Rejeito a indecência
Com toda a humildade
Quero a necessidade
Ao peso na consciência.
Então diga de uma vez
O que tenho pra fazer
Se é pra levar ou trazer
Desculpe a estupidez
Mas do jeito que tu fez
Esse guizado azedo
Carece que eu bote o dedo
Pra saber que gosto tem
Só depois eu digo "bem"
Posso comer sem medo.
O gringo disse a Vicente
Que todo ser humano
Faz por debaixo do pano
Uma coisa deferente
Uns já gostam do quente
Outros de se agasalhar
Outros gostam de passar
O ano todo fumando
Já outros tão procurando
Algo bom pra cheirar.
"É tão simples e vulgar
Suprir a necessidade
Pra cheirar não tem idade
E muito menos lugar
O importante é pagar"
Falou o gringo indecente
Se fingindo de inocente
Diminuindo o arranco
Apresentou um pó branco
Ao "amigo" Vicente.
Disse que dali pra frente
Não iria lhe iludir
Mas teria que engolir
Aquilo suavemente
Ainda disse a Vicente
Para ele fazer figa
Que a sorte era amiga
Só o risco é que se pula
Vicente ia ser "mula"
Com um pó na barriga.
Foi aí que o bom Vicente
Entendeu a tal mutreta
Do gringo picareta
Filho de uma serpente
Com a cara de inocente
Pra ferroar o amigo
Lhe expondo ao perigo
Onde o mal oprime
Numa vida de crime
Sofrendo todo castigo.
Vicente sendo um matuto
É feito de esperteza
Não ia ser sobremesa
Pra aquele gringo astuto
Ligeiro como um vulto
Veloz como um raio
Disse:"nessa não caio
Vou dá minha resposta
A esse gringo de bosta
Da venta de papagaio"
"Não sei se no estrangeiro
Existe rei ou rainha
Se lá tem briga de rinha
Ou profissão de vaqueiro
Quem sabe um cangaceiro
Tenha passado por lá
Coou no buli um chá
Feito de um formigueiro
Pra dá a gringo fuleiro
Da cara de mangangá.
"Galego vou lhe dizer
O que tem minha terra
Aonde tem uma serra
Tem alguém pra fazer
feijão com muito prazer
Para se encher o prato
Aqui vive de fato
Um povo muito feliz
Mas só usa o nariz
Para o cheiro do mato"
"E ainda digo a tu
Que não quero intriga
Pois essa minha barriga
Não é bolsa de canguru
Não é caixa nem baú
Pra carregar escondido
Um pó para ser vendido
A gente que não conheço
Galego não bote preço
Que eu não vou ser vendido"
"Aqui o que se conhece
É a vida singela
O pó que vem da canela
Ou da poeira que cresce
Tem pó que enobrece
Os rostos dessas morenas
Que cheiram a açucenas
Nas noites do seridó
Quando se enchem de pó
Ao irem para as novenas.
"No mas tudo é normal
Não se corre aqui perigo
Só tememos o castigo
É do Pai celestial
O povo desse arraial
Não viaja de avião
Balançam no caminhão
Mais não vão pra o xilindró
Então pegue seu pó
E suma do meu sertão"
"Seu gringo não leve a mal
Porque eu fico com o bem
Na terra o que me mantem
É meu viver fraternal
Aqui nesse arraial
A honradez se postula
Então galego engula
O seu pó caipora
Se não lhe meto a espora
E tu é quem vai ser mula"
Depois deu uma risada
E foi embora Vicente
Assobiando contente
Não importando com nada
Continuou a jornada
Na fé que lhe estimula
Com gingado e firula
Sem dá tapa ou murro
Vicente não foi um burro
Pra se virar numa "mula"
Desse dia em diante
Vicente não viu o gringo
Deixou de ir para o bingo
Passou a ser viajante
Poeta itinerante
Saiu tocando em frente
Hoje canta em repente
Versando sua vitória
Cantando toda a história
Do gringo e o vicente.