Cordel dos vinte anos
Recife, rua da União,
vizinho de Manoel Bandeira,
o flluido de inspiração
que traguei a vida inteira,
impregnando o pulmão,
expectorando à maneira.
Vadio por vocação,
medicina por castigo,
o bisturi numa mão,
na outra, um samba antigo,
nas cordas do violão,
a saudade pede abrigo,
vai da rua da união
buscar o mais novo amigo.
E de lá pras cercanias
de Caruaru pra além,
usando das serventias
da minha gente de bem,
navego em todas as vias,
seja de carro ou de trem,
dormindo com as cotovias,
igual a um João ninguém.
Na cabeça, as vadias,
no bolso, nenhum vintém,
fui passando os meus dias,
planejando para além,
cantar noutra freguesia,
talvez no ano que vem,
desnudando a fantasia
que todo caboclo tem.
Então mudei de cidade,
foi quando o sol se acabou,
mas não a felicidade
de estar no trem do metrô
em alta velocidade,
por baixo dos bangalôs,
uma emoção de verdade,
São Paulo me incendiou.
Cá ganhei notoriedade
status de consultor,
e pra falar a verdade,
até com um certo louvor,
um tanto assim de vaidade
de quem na vida lutou,
e um tantão de saudade,
pois esta não se acabou.
Recife, eis-me de novo,
uns vinte anos depois,
de volta à casca do ovo,
ao meu feijão com arroz,
embora um homem novo,
diferente do que foi,
mas inda gente do povo,
vaqueiro do mesmo boi.
Volto à rua da união,
radícula de poesia,
da semente de então,
que eu plantei algum dia,
onde brotou um vulcão,
que inunda a filosofia,
e explode em erupção,
cuspindo toda heresia,
vomitando de paixão,
como dos Anjos fazia:
O escarro, a constipação,
o pus, a hemorragia,
o furúnculo, o carnegão,
supuram na hipocrisia,
drenagem da podridão,
que a flor da nata escondia,
as fezes em decantação,
no cérebro da burguesia,
e os vermes da tradição
brindando a oligarquia.
Trago à rua da união
este verso envelhecido,
a minha retratação
por não ter-me despedido,
um espasmo de inspiração
de um coração carcomido,
regado pela emoção,
pelo tempo bem curtido,
na adega da solidão,
e por Bandeira ungido.
Bandeira, Manoel Bandeira,
minha bandeira de luta,
no sério ou na brincadeira
te obedeço a batuta,
que eu viva a vida inteira,
seguirei sua conduta,
que eu morra de caganeira,
minha bosta estará enxuta,
pois a bosta brasileira,
tanto fede quanto é culta.
A bosta no bom sentido,
poético e literário,
refaz o elo perdido
no movimento anti-horário,
trazendo o que foi vivido,
emoldurando o cenário,
como um tolete esculpido
à mostra num relicário,
há vinte anos escondido:
Hoje faz aniversário.
PS: Feito para a festa de 20 anos de formatura da turma de medicina,de 1978, da Universidade Federal de Pernambuco.
(Não obdece a regra do cordel)