Auto da Seca no Nordeste
Galera dessa Faces & Bocas, perdoe-me a singeleza desse ensaio - arremedo, clichê das desventuras do nordeste brasileiro; eu tinha 17 anos e,
assim como muitos da minha geração, me sentia regulado a um Stanislavski:
Narrador - A tinta ainda retrata as pinceladas trêmulas da nossa mão acanhada. Qual mão acanhada não sabe nada, senão bater no ventre, e rir e dar risada.
Coro - Qual mão acanhada não sabe nada, senão bater no ventre, e rir e dar risada.
Narrador – Antônio e Maria me ajudaram... não foi, Antônio?
Antônio – Foi.
Narrador – Não foi, Maria?
Maria – Foi.
Narrador – Foi nada! Eu é que sozinho carreguei as latas d’água.
Maria – Tu és egoísta! De resto, nada sei, mas Antônio é meu homem; não fala dele não.
Narrador – Fala Antônio de Marias, fala homem da enxada. Fala, que a noite não tardas aqui, e adepois é madrugada.
Antônio – Falar o quê, senhor? Eu não sou nada... sou só o alvo de pontaria daqueles que, na emboscada, me usam para hidratar a terra usada.
Maria – É, também não sou nada; não carreguei a lata d’água porque não tinha a água; tinha a lata... Mas os home quer trabalho, moço. Esses daqui não come há seis dias... e os de cá... morreu, Zé?
Zé – Não! Nada, nada nada...
Coro – O Zé não fala nada, ele não é nada, é só uma besteira ousada!
Maria - Virgem, caboclo, que a fome tá preta. Tá esquecida, não; tá aqui dentro guardada (barriga).
Narrador – Que posso fazer? Não tenho comida, roupa, nem casa; não sou Lampião nem Coronel, meu negócio é na faca. Sou irmão teu, Maria, de Antônio e de Zé, e dessa gente acanhada. Moro ali, adepois daquela cerca farpada. Lá também não tem água; plantei, não deu; criei, morreu; meus filhos e a minha mulher, cadê? ...
Coro – Cadê, Cadê, cadê? Nada...
Narrador – a minha mulher era a Matilde, lembra? Coitada...
Maria – Lembra, Antônio?
Antônio – Lembro. Coitada...
Zé – Gente! Água, água, água!
Narrador – Gente, Zé vê água?!
Coro – É água da boa. Terra ousada, brotou água!
Narrador – Cadê as latas vazias?
Coro – Vazaram!
Narrador – Cadê a plantação carente?
Coro – Aguarda...
Narrador – Cadê Severino?
Coro – Cadê?
Narrador – Cadê vocês?
Coro – Cadê, Cadê, Cadê; Cadê nós?
Narrador – (Apontando para Zé) – Cá está a semente guardada, que agora, regada e fortalecida, vai reproduzir em outro lugar.
Coro – Vai, homem do mundo, das escolas austeras da vida, vai pregar a tua disciplina que ainda não foi abalada, vai! Aproveita a hora usada, e faz dela a sua arma; e joga fora a outra que machuca e mata. E joga a outra fora que machuca e mata, e joga a outra fora que machuca e mata, e joga fora a outra que machuca e mata.