O DISCURSO DA SERVIDÃO VOLUNTÁRIA
Miguezim de Princesa
(Baseado na obra do filósofo francês Étienne de La Boétie – 1530/1563. Foi escrito sob a forma de um panfleto em 1552 e só publicado como livro em 1563)
I
Peço à musa do improviso
Que me dê inspiração
E a energia dos poetas
Invada meu coração
Para eu transcrever em versos
O Discurso da Servidão.
II
Voluntária servidão
De quem se abaixa ano a ano,
Satisfeito com as migalhas
Que sobram de cada plano
Da mente sociopata
Do governante tirano.
III
Cinquenta e dois é o ano
E o século é dezesseis,
Étienne de La Boétie,
Que era filósofo francês,
Detectou esse traço
E eu vou contar pra vocês.
IV
Artesão e camponês
Com a marreta e o arado
Realizam seu trabalho
De acordo com o combinado,
Quando acabam ficam quites,
Apresentam o resultado.
V
Porém, o subjugado,
Submisso à tirania,
Vive a mendigar favores,
Um cargo, uma mordomia,
E cega ante o tirano
Nunca há luz que alumia.
VI
O tirano não confia
Nem na sombra nem no vento;
O serviçal voluntário
Deve cumprir seu intento
E também adivinhar
Qual é o seu pensamento.
VII
Trabalhar feito um jumento,
Sem ter hora pra descanso,
Virar couro de pelego,
Daqueles que pegam ranço,
Pro tirano se deitar
No lombo do bicho manso.
VIII
Eu pelejo e não alcanço
O que o tirano quer:
O serviçal voluntário
Não pode ser o que é,
Nada do que tem é seu,
Nem menino nem mulher.
IX
A convicção e a fé
Têm de ser abandonadas:
Morre a personalidade
Numa curva da estrada,
O serviçal se anula,
Virando alma penada.
X
A moral não vale nada,
O que vale é se dar bem:
Não importa se o tirano
Mate dez, cinquenta ou cem,
Ao serviçal voluntário
Mais valem prata e vintém.
XI
Não foi uma voz do além
Que criou a escravidão,
Que manteve o feudalismo
E mantém a exploração,
É a maioria calada
Que sustenta a servidão.
XII
A ganância sem perdão
Perde-se no espaço infinito:
Quem mandou a multidão
Amassar barro no grito
E erguer por um milênio
As pirâmides do Egito?
XIII
Não sei se feio ou bonito,
Habilidoso ou profundo,
Quem consagrou Alexandre
Ante seu pai moribundo
E a ele deu poderes
Para conquistar o mundo?
XIV
Tanto governante imundo
Mandou na humanidade:
Nero incendiou Roma
E destruiu a cidade.
Quem é o anestesista
De toda sociedade?
XV
Jesus, com toda bondade,
Pregou a libertação,
Mas, depois de condenado,
Enfrentou a solidão:
Ficou na cruz pendurado
Diante da multidão.
XVI
O holocausto alemão,
O massacre stalinista,
A podre corrupção
Do modo capitalista
São tipos de servidão
E não de pontos de vista.
XVII
Padre, soldado ou artista,
Quem serviu ao potentado
E juntou alguma fortuna,
Se sentindo contemplado,
Pagou depois ao tirano
Com o pescoço arrancado.
XVIII
Sem vida, decapitado,
Pelo príncipe sucessor,
Quem se deu bem no passado,
No banquete se fartou,
Perde tudo na sequência,
Pois outro servo chegou.
XIX
O tirano nunca amou,
Pois não gosta de ninguém,
Ele gosta de servir-se,
Sugar a alma de alguém.
A amizade, sagrada,
Só há pra quem é do bem.
XX
Não há amizade em quem
Pratica deslealdade,
Pisoteia com desdém,
Com a força da crueldade,
E usa da servidão
Para impor sua maldade.
XXI
Sem fé nem sinceridade,
Em torno de alguma farsa,
Quando os do mal se reúnem
É vislumbrando trapaça,
Não são amigos, são cúmplices,
Co-autores e comparsas.
XXII
Mesmo no campo da farsa,
O tirano é desigual,
Pois, sempre acima dos outros,
Com poder ou capital,
Moendo o orgulho alheio,
Soprando o vento do mal.
XXIII
O seu engodo é fatal,
O golpe é feito de ardil,
Da raposa pro leão,
Quando o convite surgiu:
- Eu só vejo bicho entrar
Sem sair do teu covil!
XXIV
Desgraçado e imbecil
De quem se achega ao tirano,
Se encanta com tesouros
E começa a fazer planos,
O fogo vai consumi-lo,
Diz o poeta Lucano.
XXV
O fogo veio de Vulcano:
Quando Prometeu pegou
O lume e o acendeu,
O sátiro se atirou,
Com a paixão dos indiscretos,
Foi beijá-lo e se queimou.