MARTA GAMA, CORDEL DE FOGO E CHAMA
Eita, que de jeito te pego no conto
dessa saga de muitas léguas ajuntadas,
d'onde enfio cada palavra já de pronto
em rabiscos e juntas enfileiradas
pra te contar como veio e como foi
a saga de Marta Gama do céu até o chão,
se foi no lombo de mula ou de boi
sei não, só sei que foi num aluvião
que chamuscou cem pés de macambira
e outros cem de jambeiro, assim foi o sido
dessa história fabulosa e que não é mentira
e nem se fosse a verdade de não ter acontecido
num cordel de cem léguas e meia foi escrito
num grafite de carvão todo retorcido e envergado,
Deus diria em tábuas de esmeralda que é bonito
nascer mulher e ter no peito um coração dotado
de amor e outras finezas que lhes digo conheci
desde que pus os olhos em terra seca e pouca lama
em que passava essa dama de coque e colibri
enfeixado no ombro e, se acerto o nome, Marta Gama...
Dois anjos à tiracolo e outros três bem amarrados,
cinco botas de couro de verniz e um papagaio que repetia
à todo instante que a bela dama tinha vindo do cerrado
que no céu também existe e que a seca muito cria
pois que a fome de fogo pega o céu igual na terra cá,
só se vendo os lagartos ribanceira abaixo e acima,
nenhum pé de doce ou favo nada então de manacá,
parentes de embora foram, nem restou uma prima,
assim é o começo dessa história de muitas voltas,
já que Marta Gama instituiu sua fé neste cerrado
cheio de nuncas e ninguéns e quase nenhuma porta
para se sair da secura e navegar lá pro outro lado
onde pão dorme na mesa e café deita no bule cor de pó,
mangueiras dão de dar mangas a qualquer hora,
patos e marrecos, se não tem cisnes, dançam o forró
de Gonzagão e galo amunta sem usar de espora...
Mas que Marta Gama tinha jeito de atrevida e ar decidido,
conjurou junto com cachoeiras que do alto descem cá,
enfeitou todo o sertão com tanques feitos de vidro,
ajeitou cada quintal e disse a si "aqui tudo dá",
semeou aipim e milho e caju e rebobinou minérios,
jaca veio dar seu riso, amora e coco de mil palmeiras,
um circo trouxe pra tirar o povo do seu um tanto sério,
caxixi e bumbo e caixa e a São João levantou a bandeira,
fez casario de trinta quartos e hospedou de pobre a graúdo,
nem de rogada se fez ao lhe pedirem um igreja pra uma santa,
que veio de longe o manco, o esperto, o político e o mudo,
mas nem de imaginar pôs-se a saber que era ela, Marta Gama,
a escolhida do povaréu que fez cidade à volta de si,
em retrato de há muito feito espalhou-se fama e nome,
romaria de léguas longe e procissões mais de mil vi,
gente em busca de salvação e também de matar a fome...
Marta Gama, contadas suas peripécias, virou santa,
curou pernas e papos e caxumbas que não tinha cura,
isso foi contado por Zé das Histórias depois da janta,
sentado, viola na mão, mastigando caroço de uva,
e ainda se diz, cá nessa parte dessa cidade chamada Fortaleza,
que Marta Gama ainda vive no coração do sertanejo lutador,
pois que trouxe viva vida e crença e fé e espalhou beleza
dando de si como faz a roseira, mesmo que com espinhos, dá flor...