Donzela desesperada
A estória revelada
Eu ouvi de um menestrel
Contada em viva voz
Que transcrevo num papel
Para que leia o Doutor
O feirante ou um pintor
Ou quem gosta de cordel
O cenário a ser pintado
Teve por palco o sertão
Lugar onde a natureza
Entronou rei, o verão
Nos deixando a aridez
Nossa fonte de escassez
Predomínio nesse chão
Tudo se deu num casebre
Cercado por virgem mata
Com peitoris no alpendre
Com cumeeira bem alta
Que era o castelo de Glória
Personagem da história
Que este poeta relata
Nesse lar de sertanejos
Convívio de muita gente
Morava um preceito antigo
Que sempre esteve presente:
Natural era o direito
O filho sempre sujeito
Às ordens do pai somente
Doze filhos do casal
Viviam na moradia
Trabalhavam dia e noite
Riqueza ali não havia
A mãe com muita tristeza
Quando se sentavam à mesa
A pobreza dividia
A prole toda solteira
Não se falava em casar
Porque tempo não havia
Tempo só prá trabalhar
Tudo era assim no passado
Todo filho escravizado
Pelo dono do lugar
Na divisão da labuta
Donzela ía ao curral
Na lavoura, a macharada
Filhas limpavam o quintal
E na hora do almoço
Aos filhos se dava o osso
O filé, ao maioral
Todo casal desejava
Ter uma prole comprida
Tradição familiar
A todo custo mantida
A fim de enfrentar a luta
Dando os frutos da labuta
Para quem lhes deu a vida
No sertão, ter doze filhos
Era quase obrigação
Pois a metade morria
Isso por qualquer razão
Sobrava pra trabalhar
Desenvolver o lugar
A outra metade então
Era muito incipiente
O acúmulo de riqueza
Pra contratar mão-de-obra
E explorar a natureza
Se empregado não tinha
Ter muitos filhos convinha
Ao casal com certeza
Para evitar outras perdas
Proibia-se o casamento
Assim mantinha-se os filhos
Presos neste regimento:
Muito labor, pouco estudo
E para suportar tudo
Reza a qualquer momento
Alegria nessa casa
Além do amor materno
Somente de ano em ano
Se fosse bom o inverno
Acaso a chuva faltasse
Sequer nosso chão molhasse
Virava o sertão um inferno
Com tantas dificuldades
Com tantos pra alimentar
Ao arrimo de família
Cabe serviço arrumar
Procurar na redondeza
Num roçado ou numa empresa
Forma de lhes sustentar
Buchudo, o pai da família
Para melhorar a ceia
Contratou com um vizinho
Que morava noutra aldeia
Um espaço no açude
Pra plantar de forma rude
Uma vazante de meia
Em casa, feliz demais
O patriarca chegou
Reuniu toda a família
E a todos comunicou
Que na fazenda vizinha
Conforme o tempo convinha
Uma vazante arranjou
Falou que somente Glória
Na casa iria ficar
Que os outros iam com ele
Cuidassem em se preparar
Porque na próxima aurora
Bem cedinho, sem demora
A pé iam viajar
Conforme foi planejado
Glória sozinha ficou
Tomando conta da casa
E de tudo ela cuidou
Dos animais no curral
Deu água, capim e sal
De tudo ela se importou
Apesar da formosura
E de ser moça decente
Glória não teve nenhum
Garoto por pretendente
O que muita falta faz
Desejos? Tinha demais
Ficava nisso somente
Uma semana depois
Grande mudança ocorreu
Nuvens pesadas voltaram
O céu rápido escureceu
Era o tempo anunciando
Que o inverno estava chegando
Que a seca imunda morreu
O trovão tomou de conta
Que a fechada estremeceu
Os raios cruzaram o céu
Com medo um gato correu
Tava todo arrepiado
Passou por Glória avexado
Por certo ele se escondeu
Nuvem escura, chuva grossa
E o sertão sendo banhado
Barreiros fazendo água
Nasce comida prá o gado
É tudo que se deseja
E na crença sertaneja
Um dos Santos é festejado
No alpendre do casebre
A moça a tudo assistia
Como era linda a imagem
Que da chuva Glória via
Chuva que na telha quica
Das telhas corre prá bica
Aparada na bacia
De repente apareceu
No casebre um viajante
-Moça me faça um favor
Falou assim o passante
Eu estou com precisão
Juro que não sou ladrão
Ajude a mim neste instante
Esta chuva é persistente
Preciso de proteção
Deixe eu ficar no alpendre
Tenha de mim compaixão
Seja bem-vindo senhor
Respondeu ela com ardor
Certa é sua precisão
Eu prometo ir embora
Assim que a chuva passar
Não serei inoportuno
É que eu não posso andar
Vendo no céu o corisco
E eu tenho um compromisso
De em Caicó chegar
Como a chuva não passou
Conforme era esperada
A moça se viu sujeita
Ao rapaz dar morada
E lhe ofereceu guarida
Não tendo outra saída
Por ele foi aceitada
Ela procurou na casa
Nenhuma rede encontrou
Por ser tão grande a família
Todas o seu pai levou
Na viagem que ele fez
Disse ela outra vez:
Só uma cama restou
Ela falou: - esta noite
Vamos dividir a cama
Ele ficou de um lado
Do outro ficou a dama
E como estariam a sós
Pois no meio os lençóis
Para evitar qualquer drama
Ele deitou e dormiu
Ela ficou acordada
Olhava aquele rapaz
Desejando ser tocada
Porém ele a respeitou
Irada ela levantou
As quatro da madruga
As cinco ela foi ao quarto
Tocou no moço e chamou
Levante, tome café
Há tempo a chuva parou
Depois siga e vá embora
Por que é chegada a hora
A mordomia acabou
Tá, eu gostei de você
Falou ele sorridente
Voltarei aqui depois
Estando o seu pai presente
Vou pedir a sua mão
Lhe entregar meu coração
Eu serei seu pretendente
A moça disse pra ele
Por favor pare, lamento
O meu pai vai dizer não
Não lhe fale em casamento
Você vai ser humilhado
Ele fica endiabrado
Isso é fato, não invento
Se seu pai disser um não
Menina moça, eu juro
Eu lhe carrego escondido
Se preciso, eu pulo o muro
E levo você comigo
Prá você juro, eu digo
O meu plano é bem seguro
Glória mirou nos seus olhos
E falou prá ele assim:
Tua promessa é vazia
É falso como caim
Coragem você não tem
De fazer isso, meu bem
De pular muro por mim
Pois você dormiu comigo
Por causa do tempo atroz
Na cama estava ao meu lado
Estávamos os dois a sós
Como pensa em pular muro
Se na cama, no escuro
Não pulou nem os lençóis