O NATAL DO PATO

I

Quando chega o Natal

Durante o ano esperado,

Ninguém esquece o Peru

Que até ali foi ignorado

E, apetitoso demais,

Por famintos comensais

Numa ceia é saboreado.

II

Antes de ser degolado

Para assar-se no fogão,

Bebe um gole de cachaça

Como reza a tradição,

Assim sua carne sadia

Torna-se tenra e macia

Nos dentes do comilão.

III

Enquanto isso seu irmão,

O Pato desengonçado,

Num lago nada tranquilo

Indo de um a outro lado,

Mergulhando na lagoa

Bate as asas e até voa

E nem sequer é lembrado.

IV

Algo me parece errado

Na vida do pobre Pato,

Uma ave privilegiada

Tanto quanto eu constato,

Pois que além de voar,

Caminha e sabe andar

Pela estrada ou no mato.

V

Nada muito bem, de fato

Sua destreza não é pouca

E ele ensaia até cantar,

Só que sua voz sai rouca,

Portanto o Pato sortudo

É ave que faz de tudo,

Mas somente meia boca.

VI

Um dia dormiu de touca,

Por isso o Pato perdeu

A realeza que ele tinha

E todo o encanto seu:

Foi no primeiro Natal

Que lhe sobreveio o mal

E por certo o mereceu.

VII

Foi quando Jesus nasceu

Para ser o Nosso Cristo,

Sendo o Pato até esse dia

Como outro jamais visto:

Belas penas multicores,

Voz linda e outros primores

Era invejado e benquisto.

VIII

Todo o orgulho é sinistro

Como a vaidade é ilusória,

Ninguém é dono de nada,

Só a Deus pertence a glória,

Tanto assim que a beleza

Não se pode pôr na mesa,

Pois que seu fim é a escória.

IX

Do nosso Pato, a história,

Tal qual a Musa me inspira,

Narrarei o que ocorreu

Conforme a mente delira:

Sobre a Terra e sob o céu

Quero tirar meu chapéu

Pra quem provar ser mentira.

X

O que muito me admira

Até é bom que eu repita:

Por que será que o Pato

É uma ave tão esquisita?

Acho que tenho a resposta,

Daí porque faço aposta

Contra quem desacredita.

XI

Nenhuma outra ave bonita

Desde o reinado de Adão

Não se igualava ao Pato,

Nem mesmo o belo Pavão;

Com beleza magistral,

Sem concorrente ou rival,

Era um invencível campeão.

XII

Voava melhor que Gavião

Por sobre o Monte Calvário;

Num desafio ao Sabiá

Superava até o Canário,

Com seu belo canto afiado

Nem o Uirapuru afamado

Para o Pato era um páreo.

XIII

Voando em seu itinerário,

Redondo ostentava o bico

E os bichos o invejavam

Ante um cabedal tão rico,

Mas isso um dia acabou

Quando um Galo cantou

Antes de urrar o Burrico.

XIV

Apontou nos céus o Mico

Uma estrela reluzente...

Bastou para a bicharada

Reunir-se imediatamente:

“Vamos depressa a Belém

Saudar Aquele que vem

Pra fazer do bicho, gente!”

XV

Fez-se a chamada urgente,

Para ver se algum faltava,

Somente um não respondia

Por mais que o Porco gritava:

“Irmã Onça cadê o Pato?

E ela perguntou ao Gato

Que com Preguiça falava.

XVI

Jacaré que cochilava

Teve uma ideia premente:

“Vamos às margens do lago

De mãos dadas em corrente,

Pois lá com certeza o Pato

Nada ou dorme pacato

Seu sono inocentemente.”

XVII

Seguiu-se assim em frente

Uma imensa procissão

Com toda a bicharada

Liderada pelo Leão

E gritando para o Pato

Vir integrar-se num ato

De fervorosa missão.

XVIII

Na beira de um ribeirão

Pousado sobre um toco,

O Cachorro surpreendeu

O Pato só e dorminhoco;

Deu a Cobra um sibilado

E o Lobo o seu uivado,

Papagaio falou pouco.

XIX

Despertou-se o Pato mouco

Ante a imensa multidão

De animais diante dele,

Se encheu de satisfação

E pensou entusiasmado:

“Vou ser agora aclamado

O Imperador do sertão”.

XX

“Viemos aqui, meu irmão”,

Disse o Sapo eloquente:

“Pra fazer-lhe um convite

Numa hora inconveniente,

Pois que aqui estamos nós,

Sendo o Boi o porta voz

Da irmandade presente”.

XXI

Disse o Touro: - “Esta gente

É uma unida bicharada

Tão só pela paz reunida

Numa união animalada

Em romaria a Belém,

Honrar ao Cristo que vem

A nós em missão sagrada”.

XXII

A Águia foi mais ousada

E falou: "Não seja ingrato,

Venha irmanar-se conosco

Neste sacrossanto ato,

Pra saudar como convém

A Jesus o nosso Bem,

Humilde e sem aparato”.

XXIII

Empinou-se o belo Pato,

Quase propondo um duelo

E em seu infamado orgulho

Discursou: “Eu que sou belo

E dos bichos o benquisto,

Não me curvo ante um Cristo

Preto, branco ou amarelo”.

XXIV

“Ao Messias não me atrelo,

Pois para mim é suspeito

Quem vem à luz num curral

Tendo um cocho por leito,

Duma virgem sendo filho

E de cuja estrela o brilho

Prenuncia um pai perfeito”.

XXV

“Sou Pato e no meu direito

Recuso-me com altivez

Visitar a manjedoura,

Que impressiona a vocês,

Pois este pobre menino

Terá um triste destino

Na grandeza ou pequenez”.

XXVI

“Digo-lhes mais uma vez:

Tudo isso vai dar em nada,

Ganhariam muito mais,

Se aqui nesta madrugada,

Com uns tiros de festim

Bichos honrassem a mim,

Ave linda e admirada”.

XXVII

Pós partir a bicharada

Rumando para Belém,

Voltou o Pato a adormecer

Em seu orgulho e desdém,

Mas eis que surge do mato

Um Saci e chuta o Pato

Com um pé só que ele tem.

XXVIII

O Saci botou também

Areia grossa bastante,

Garganta abaixo do Pato

Pra que dali e doravante

Aquela sua voz maviosa

Ficasse feia e fanhosa,

Rouquenha e irritante.

XXIX

A partir daquele instante

Ficou feio o belo Pato,

Que para sempre perdeu

Todo o imponente aparato;

Saci na lama o esfregou,

Seu penacho se sujou

E seu bico ficou chato.

XXX

Foi a sola do sapato

De um Saci da perna só

Que achatou o bico do Pato,

Como contou minha vó:

Preto ou branco todo ano,

Branco e preto é Corintiano

De quem temos pena e dó.

XXXI

Na garganta um cego nó

Para o Pato é um entrave,

Não visitou Deus Menino

E hoje por mais que se lave

Jamais fica colorido,

Seu grasnado é um gemido

Pelo seu pecado grave.

XXXII

É por isso que esta ave

Vive sempre a mergulhar,

Numa inútil tentativa

De as cores recuperar;

Bebe água e faz gargarejos,

Pois tem sonhos e desejos

De novamente cantar.

XXXIII

Eu que vivo a versejar

Também carrego uma cruz,

Não sou melhor que o Pato

Nem pior que o Avestruz,

Sei que o humilde é exaltado

E o orgulhoso é humilhado,

Tal como ensinou Jesus.