O homem descartável.
Sou um homem descartável
Nada sou para ninguém
Pra viver sou tão moldável
Tanto quanto um João-ninguém
Geralmente algo instável
Não me deixam ser alguém.
Quando choro não me ouvem
Mas também não sei falar
O patrão quer que me doem
Sobre mim querem lucrar
Fruto de um ato que houve
Assim vão me descartar.
Se começo a gatinhar
Logo vem a correção
Para a roupa não sujar
Senão ganho beliscão
Se puderem se livrar
Me colocam num caixão.
Quando posso ir à escola
Aprender a escrever
O caderno é uma esmola
Que trabalho para ter
Se um dia usei a cola
Professor foi me bater.
Não há nada nesse mundo
Que não vá para o descarte
Vai do limpo ao mais imundo
Vai do todo à menor parte
Se com o nada me confundo
Mesmo assim sou disparate.
Ao amanhecer o dia
Lá está meu cobrador
Obrigando ao dia-a-dia
Sem nenhum medo ou pudor
Tenta mostrar valentia
Ignora o meu valor.
Quando chego à adolescência
Muita coisa já ouvi
Sofri muita violência
No sereno já dormi
Também veio a malquerença
Mas com ela convivi.
A primeira namorada
Eu sequer podia ver
Com a roupa remendada
E trabalho pra fazer
Fui descarte dessa amada
A perdi para aprender.
Antes de ser um adulto
Veio a hora do trabalho
Minha vida eu consulto
Pra saber se ainda falho
Sei que não sou tão estulto
Mas sou carta do baralho.
Depois vem o casamento
Quando descarto o meu pai
Minha sogra é só lamento
Se a filha lá não vai
Não caiu no esquecimento
Do descarte ela não sai.
Na velhice, já doente,
Sofro descarte sumário
Pro patrão sou um demente
Pro governo sou otário
Sou agora um excedente
Sem direito a um salário.
Finalmente vem a morte
Destino que todos vemos
É o final da nossa sorte
Quando da vida esquecemos
O enterro é o esporte
Para descarte do que temos.